Vai pra Cuba!

Estive em Miami sim, e daí? Não fiquei lá pra ser deportado!

Quantos deportados são bolsonaristas-trumpistas roxos? Eu me solidarizo com os migrantes em geral, mas em relação a esses, confesso que me fazem lembrar de uma frase de Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”

Escrito en Blogs el
Mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).
Estive em Miami sim, e daí? Não fiquei lá pra ser deportado!
Vista aérea de Key West, em Miami. Tore Sætre / CC BY-SA 4.0

— Vai pra Cuba!

Isso era um grito comum de babacas achando que ofendiam a gente. Falei para um deles:

— Já fui. E pra Miami também.

Miami, claro, era ou é o lugar preferido pelos babacas de toda a América Latina. Além de bregas em geral, direitistas que fugiram de seus países tinham um destino quase certo: Miami. Os roteiros turísticos para brasileiros, com guias mostrando as “maravilhas” da cidade, incluíam passagem em frente a palacetes de milionários daqui. Nelson Ned, Sílvio Santos, cantores sertanejos etc. etc.

Volto à minha resposta:

— De Cuba, gostei bastante, tanto que voltei lá em plena crise, quando o país foi abandonado pela Rússia, quando se converteu ao capitalismo e levou com ela quase todos os países do chamado Bloco Soviético. De Miami... bem, é uma cidade bonita. Mas nunca tive vontade de voltar lá.

Na verdade, não teria ido nem nessa única vez que fui. É que meu destino, com minha namorada e um casal amigo, era Nova Orleans, e não havia voos diretos para lá. Precisamos ir a Miami para continuar a viagem. E demos uma parada em Miami, na ida e na volta. Valeu para conhecer um pouco a “cultura” da cidade, suas características, mas pronto! E aproveitamos para passear rumo a Key West, uma curiosidade que eu tinha quando criança, ao saber que fizeram uma estrada que na verdade é um conjunto de pontes ligando várias ilhas do sul da Flórida. Este passeio foi bom. Ponto final!

Volto a falar de Miami daqui a pouco. Começo lembrando da marcação da viagem que valeu a pena, pois Nova Orleans foi acima das expectativas, antes do furacão Katrina, que detonou a cidade. Não sei como está atualmente.

O motivo da lembrança dessa viagem agora é a deportação de imigrantes latino-americanos pelo governo Donald Trump, o amadíssimo dessa turma que gosta de Miami e de toda a gringolândia. Ironia. Quantos deportados são bolsonaristas-trumpistas roxos? Eu me solidarizo com os migrantes em geral, mas em relação a esses, confesso que me fazem lembrar de uma frase de Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.

Governador Valadares, bela cidade mineira no Vale do Rio Doce, segundo dizem tem 15% da população vivendo nos Estados Unidos, a maioria vivendo ilegalmente, portanto com risco de deportação. Tem muita gente boa entre esses migrantes. O que me disseram que a cidade está muito temerosa desde a posse de Trump.

Um parêntese: cidade considerada grande pelos padrões mineiros, ela é uma das vítimas do “desastre de Mariana” – o rompimento de uma barragem de dejetos que matou o rio e algumas pessoas, mas não só isso: matou também modos de vida, fontes de renda e sobrevivência de muita gente e de cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo. As mineradoras (Vale entre elas) até hoje não pagaram os estragos nenhum responsável foi em cana. No caso de Valadares, boa parte da renda dos moradores provém do envio de dólares de emigrantes a seus parentes, tanto que havia uma brincadeira de gente de lá mesmo, chamando a cidade de Valadólares. Agora esta receita está sob ameaça.

Na época em que pedimos visto de entrada na gringolândia, Governador Valadares já tinha a fama de ser recordista em migração para lá, mas muitos mineiros de outras cidades também mandavam migrantes legal ou ilegalmente para o “grande irmão do norte”. Por causa disso, vistos para turistas mineiros eram mais complicados. Achavam que, chegando lá, dispensariam a passagem de volta e passariam a viver clandestinamente no país.

Minha namorada e meu casal de amigos receberam o visto sem problemas, mas eu, por ser mineiro, fui chamado ao consulado estadunidense em São Paulo para “justificar” a viagem. Havia um monte de gente na mesma situação que eu – não mineiros, mas também chamados por algum motivo, como renda não suficiente (pobres! O direito de ir e vir não vale pra todo mundo). Boa parte era de pretendentes a viagens à Disney e também a Miami.

Chamado ao guichê, um funcionário falando português com sotaque mais ou menos carregado, quis saber o que eu pretendia fazer nos Estados Unidos. Por que queria viajar para lá?

Expliquei que minha namorada gostava muito de jazz e queria conhecer Nova Orleans, ouvir a música na fonte, terra de Louis Armstrong. E em seguida, puxei um papel e uma caneta do bolso, desenhei um mapa de Minas Gerais, localizando nele as cidades de Governador Valadares e Nova Resende, minha terra, e mostrei pra ele, explicando: “Veja... Governador Valadares fica aqui, no nordeste do estado; Nova Resende fica aqui, no sudoeste, a mais de mil quilômetros de distância. Não pretendo ficar morando nos Estados Unidos”. Ele foi simpático, sorriu, e carimbou a aprovação do visto.

Outro parêntese aqui: em Nova Orleans e outras cidades da Louisiana, os moradores foram quase sempre simpáticos com a gente. Talvez por sermos todos brancos e não falávamos espanhol, mas um idioma que eles não conheciam e perguntavam pra gente que diabo de língua estávamos falando. Contávamos que era português, falado no Brasil, e quase ninguém sabia qualquer coisa sobre o nosso país Muitos, inclusive com formação universitária, não sabiam nem do café nem do Pelé...

Agora, Miami... Voltamos de Nova Orleans para lá num 31 de dezembro, e pegaríamos o avião para o Brasil dia 2 de janeiro. No caminho entre o aeroporto e o hotel, no centro da cidade, uma avenida já chegando ao nosso destino estava cheia de gente acampada no canteiro central. Não era acampamento de sem-teto... era gente muito festeira. No hotel, perguntamos o que estava acontecendo e nos disseram que por aquela avenida passava um dos maiores e mais belos desfiles de ano novo dos Estados Unidos. Uma festa que atraía gente demais, de longe... E muitos acampavam no canteiro central não só porque era mais gente do que cabia nos hotéis, mas também porque ali estariam num espaço privilegiado para assistir ao desfile.

No quarto, liguei a televisão e no canal local entrevistavam turistas internos dos Estados Unidos que tinham ido lá para a festa. Muitos vinham de mais de mil quilômetros de distância, ansiosos pelo desfile maravilhoso na virada do ano. Vários já tinham ido lá em anos anteriores e voltavam sempre, porque era bom demais. Ficamos curiosos.

À noite, vimos funcionários do hotel colocando cadeiras na calçada, diante da avenida do desfile e perguntamos se eram para os hóspedes. Sim, eram, mas para ocupar uma delas era preciso pagar dez dólares. Preferimos ficar no quarto – o casal amigo foi para o nosso, levando bebidas.

Das janelas de frente para a avenida, no quarto ou quinto andar, não me lembro, via-se talvez até melhor o desfile, do que numa cadeira da calçada. E aguardamos, até que enfim, lá veio ele. Era como uma fanfarra com balizas (aquelas meninas fazendo malabarismo na frente) e alguns carros alegóricos, um deles com uma Minnie (do Walt Disney) e um Mickey bem grandes, virando a cabeça de um lado pro outro e acenando para a multidão, que vibrava bastante, e em cima dos carros alegóricos, moças jogando balas para o público.

Ficamos pasmos: é isso? A grande festa, o desfile que atrai gente de longe é isso? Não era à toa que um desfile de escola de samba era tão admirado no mundo todo.

No dia seguinte, estivemos na rua 8, “Calle otcho”, na pronúncia hispânica, ocupada por cubanos refugiados e boa parte da escória da América Latina. Jantamos lá, num restaurante hondurenho, comida parecida com a brasileira. Tanto neste como em outros restaurantes típicos dos países do continente, quase todas as comidas incluíam “plátanos” (bananas). Boa comida, só não dava para conversar sobre política, né? Muitas pessoas ali (talvez a maioria) eram apoiadoras de ditaduras que um dia massacraram opositores em seus países, e com o fim delas, se refugiaram no lugar preferido desse tipo de gente.

Bom... Dia 2 estávamos no aeroporto esperando o avião para voltar ao Brasil. Eram tantas compras dos brasileiros deslumbrados que a bagagem despachada não estava cabendo no bagageiro. Muita coisa teve que ser levada nas mãos dos passageiros, extrapolando inclusive o espaço para bagagem de mão. Tinha de tudo, coisas grandes, como aparelhos de TV e fornos elétricos. Mais baratos que no Brasil? Talvez. Mas valia a pena? Sei não...

O voo estava bem atrasado. Um funcionário informou que esperavam um voo de Orlando, trazendo passageiros da Disney. Demorou, mas chegou. Na fila de embarque, um monte de gente, inclusive adultos, com aqueles bonés do Mickey. Perguntamos a um casal com duas crianças se valia a pena. Ele disse que esteve antes no Play Center, um parque de diversões em São Paulo, e achou mais divertido do que na Disney, onde havia fila para tudo quanto é coisa. Quase uma hora para chegar a sua vez em cada brinquedo.

Comentei com meus companheiros de viagem que deveríamos ter comprado uma gravadora de vídeo e ficar um pouco parados na porta de embarque, filmando os pés de todo mundo. Daria um trecho divertido de um documentário sobre brasileiros que passeavam pela Flórida. Uma das coisas que os turistas compravam eram tênis de luxo. Para não pagar impostos, usavam no embarque, todos novinhos, uns bem grandões, e eu comentava: “Tudo tênis zero quilômetro! Aquele ali tem quatro marchas pra frente e uma de ré...”. Outros, não sei porque tão grandes sendo números pequenos, para crianças, eu comentava: “Aquele ali pode brincar de joão-bobo”. Deve ter gente que hoje não conhece isso e explico: joão-bobo era um tipo de boneco grandão com pés pesados, que você dava um tapa na cara, ele caía e voltava a ficar de pé. Havia muitas crianças com aqueles tênis grandões e eu achava que funcionariam mesmo como o tal boneco...

Enfim... Nestes tempos sombrios, lembro que tem muita gente boa lá. Mais da metade dos eleitores são trumpistas, mas além dos que não são tem vários intelectuais como Noam Chomsky e Angela Davis. E muitos migrantes são o que bolsonaristas chamam de “pessoas de bem”, ou seja fascistas, mas muitos não devem ser.

O mundo vai mal, e o padrão dominante em vários lugares é o trumpista. Como não sou “bonzinho”, não tenho pena dos que são vítimas do próprio veneno. Acho que um comportamento menos calhorda e imbecil deve ter volta. Mas quando?

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar
Logo Forum