ESGOTAMENTO

Ingrid Gerolimich: Saúde mental no trabalho está se tornando um dos maiores problemas políticos

Ao Fórum Onze e Meia, psicanalista comentou sobre o cenário alarmante de casos de ansiedade e depressão de trabalhadores brasileiros

Ato pelo fim da escala 6x1 e em defesa da saúde mental dos trabalhadores.Créditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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A psicanalista e socióloga Ingrid Gerolimich esteve no Fórum Onze e Meia desta segunda-feira (24) para falar sobre o cenário alarmante de casos de pessoas afastadas devido a quadros de ansiedade e depressão por causa do trabalho. Em 2024, o Brasil registrou recorde de pessoas que precisaram deixar momentaneamente as atividades profissionais. Foram 470 mil casos, o que representou aumento de 67% na série histórica de dez anos. 

Gerolimich afirmou que o fenômeno, que acontece não só no Brasil, mas no mundo, tem uma relação intrínseca com o que é chamado de "capitalismo tardio" ou "neoliberalismo", que impõe um "modelo de produção que ele já tem um esgotamento por si só". 

"Ele [modelo neoliberalista] trabalha com a noção de exploração dessa mão de obra e, quanto maior a exploração, a gente tem uma relação direta com o crescimento de uma série de problemas de saúde mental e saúde física", disse Ingrid. 

Na entrevista [confira a íntegra abaixo], a psicanalista também traz a questão do perigo da medicalização feita sem levar em conta esse problema social do trabalho, o cenário do uso de opioides nos Estados Unidos, a falácia do discurso do "empreendedor de si" do capitalismo, o impacto das redes sociais para produzir o sujeito "fracasso de si mesmo" e as novas perspectivas das juventudes para o mundo do trabalho.

Confira a íntegra da entrevista com a psicanalista Ingrid Gerolimich abaixo:

Exaustão do trabalho, uso de opioides e os "diagnósticos" de TDAH

Você tem um mundo do trabalho que é extremamente explorador no sentido dessa mão de obra, e aí o que você faz para manter essa mão de obra ali, de uma certa forma, funcionando nessa engrenagem? É medicalizando, né? Então, a gente tem dois problemas aí: você tem uma crise no sentido da saúde mental dessas pessoas que não estão suportando esse tipo de sistema, e por outro lado, esse sistema, esse mesmo capital, tentando resolver isso com a alta medicalização.

Em todas as crises, quando a gente via no pós-guerra, por exemplo, os soldados se viciavam em morfina não só por conta do efeito físico que isso causa, mas também do efeito mental também. Ela tem um efeito ali relaxante para você sair um pouco daquela realidade. Então, os opioides têm uma relação com isso também. A crise dos opioides nos Estados Unidos é uma crise da classe trabalhadora, né? Uma crise da classe trabalhadora americana, branca, classe média, que ficou viciada por conta disso. 

Quer dizer, você tem que manter essa mão de obra no mercado de trabalho funcionando na engrenagem, para isso você vai lá e fala: 'bom, resolve-se o problema medicalizando, então vamos lá dar um antidepressivo'. E não é à toa que não só nos Estados Unidos, mas no Brasil, metade praticamente dos remédios controlados que se compra hoje nas farmácias é antidepressivo, é ansiolítico.

Ou seja, eles criam esse problema e como forma de solução para esse problema, – que a gente sabe que não é solução – eles criam essa questão da medicalização e aí a gente vai vendo todos os problemas que surgem a partir daí. Então, a gente vai vendo que tem o aumento dessa epidemia, tanto de depressão, de ansiedade, do próprio TDAH, que as pessoas falam: 'ah, todo mundo hoje tem TDAH'. Então, vai lá e medicaliza a criança, taca remédio nela.

O que é o TDAH? É justamente a incapacidade, muitas vezes, de você funcionar dentro dessa engrenagem. Então, se diz: 'nossa, a pessoa tem um problema, né? Ela é disfuncional'. Você cria uma noção de uma doença que talvez nem sequer exista, né? Ela é na verdade uma incapacidade que a gente tem de acompanhar esse sistema, de acompanhar esse mundo do trabalho tal qual que eles não nos exigem, né? E ainda tem um outro problema, porque no neoliberalismo, nesse capitalismo contemporâneo, você ainda coloca a culpa no sujeito. Então, se está depressivo, se está ansioso, o problema é você. Você é frágil demais para atuar no sistema. Ainda tem essa questão, ainda tem essa culpa que se joga porque exige-se uma performance enorme desse sujeito.

Ser empreendedor de si: outro lado perverso do capitalismo

A gente tem uma precarização do mundo do trabalho que é uma outra coisa, um outro lado perverso da história, porque aí diz: 'bom, você é o grande empreendedor de si mesmo, você é uma empresa', e então a gente já não é mais um corpo que atua dentro de um sistema do que se pensa um sujeito existindo no mundo, você é um corpo-capital, você é um corpo-empresa, você é um corpo-máquina, né? Toda nossa relação existencial com a vida está relacionada a esse mundo do trabalho.

Redes sociais e o fracasso de si mesmo

Quando você constrói o funcionamento de uma rede social, você tem ali uma série de pessoas, desde neurocientistas, psicólogos, enfim, pessoas que atuam nessa área, para entender o funcionamento do cérebro, para dizer: 'bom, isso aqui vicia, isso aqui gera dopamina'. Dopamina vicia, então, quanto mais curtida você recebe, isso tem alterações, que são alterações cognitivas, alterações do próprio cérebro – quanto mais curtida eu recebo, mais dopamina eu recebo, ou seja, mais prazer. Um prazer muito rápido, que é mesmo a dopamina, é o tipo de prazer que você sente quando a pessoa usa também uma droga.

Esses prazeres estão interligados, ele vicia tanto quanto uma droga sintética, ele vicia tanto quanto outras formas, outros tipos de vício. É a mesma lógica de te viciar, porque quanto mais tempo você passa lá, mais tempo você consome, mais tempo você também tem o seu conteúdo consumido e você vai rodando aquela engrenagem. 

Então, como a gente tem tudo hoje funcionando nas redes, você tem por exemplo às vezes uma mulher que é trabalhadora, que é uma profissional liberal que sempre teve seu trabalho ali, e que de repente se não estiver nas redes, o seu trabalho praticamente não funciona. Você simplesmente não consegue mais viver do seu trabalho pelo trabalho que você exerce. Você tem que ser uma influenciadora.

A quantidade de artistas que a gente vê, artistas consagrados, reclamando disso, falando: 'bom, eu não sou mais chamada para fazer um filme, para fazer uma novela, enfim, eu não posso mais apresentar o meu trabalho, o meu serviço que é a minha arte, porque eu não tenho um determinado número de seguidores'. É isso que está determinando quem a gente é hoje. Quantos seguidores, quantas pessoas a gente tem ali nos seguindo? 

Essa própria lógica de seguir é uma lógica muito perversa, né? Você não cria redes de contato com a pessoa de troca, você tem alguém que te segue, Alguém que está ali te referenciando, enfim. Então, toda essa lógica, obviamente, é muito difícil, é muito complicada.

Além de ter essa necessidade da performance na rede social, você também tem que existir como seu trabalho, e muitas vezes você nunca teve essa presença, você nunca precisou ter, então, de repente você precisa ter para continuar exercendo essa função, e aí é uma outra angústia, que gera também ansiedade e gera a própria depressão, porque é justamente a depressão do sujeito contemporâneo, né? É o fracasso de si mesmo.

O neoliberalismo tem essa capacidade [de produzir o 'fracasso de si mesmo'], acho que esse é o discurso mais perverso que a gente tem do capitalismo. Porque se antes a gente tinha uma relação como trabalhadores de sindicato, você sabia exatamente com quem você tinha que lidar, você sabia quem era o inimigo ou você sabia quem era aquele que te explora de uma determinada forma, hoje você não sabe quem te explora, hoje você não tem acesso a quem te explora, você não nomeia isso.

E o pior de tudo: você acredita que você é o sujeito que fracassa nesse processo, que o grande problema não é o outro no sentido desse mercado, no sentido de toda essa engrenagem que é perversa. Não, o problema é você. É você que não dá conta, é você que não é bom o suficiente, enfim. Então, eu acho que essa é a lógica mais perversa e foi o pulo do gato do capitalismo contemporâneo.

A gente sai da Revolução Industrial, a gente sai do capitalismo moderno, onde a gente tinha uma capacidade ainda de organização, dos movimentos, os sindicatos eram fortes, a gente tinha essa capacidade de se organizar para tentar melhorar as coisas. Hoje não, a gente não consegue fazer isso porque a gente não tem isso nomeado, a gente não tem isso bem definido, a gente se culpa nesse processo e eu acho que isso é o que também permite com que a gente vá precarizando cada vez mais o mundo do trabalho.

É o cara que tem um uber e acha que ele é um empresário, né? Enfim, ele se considera ali aquele empresário de si mesmo. É isso, você vai tratando a precarização como se fosse algo positivo e sem perceber o grande mal que isso tem gerado. Porque como é que a gente vai lidar com o mundo do trabalho cada vez mais precarizado onde a gente não tem sequer mais acesso à proteção trabalhista?

As novas perspectivas das juventudes para o mundo do trabalho

[O conceito do 'empreendedor de si'] está disseminado em todas as faixas etárias porque essa é a nova realidade. O mundo vai se organizando dessa maneira. Alguém estava me dizendo outro dia que as empresas colocam vaga de trabalho e não tem [candidatos], que o problema não seria o desemprego, o problema é que as pessoas não querem trabalhar nesse sistema hoje, que é esse sistema 6x1, que são vários horas de trabalho, você não tem o mínimo de flexibilidade de horário. 

Muitas pessoas estão migrando também para essa lógica mais precarizada, entendendo que também tem, por outro lado, essa coisa da flexibilização em dado momento, em que você pode ganhar mais ou menos dependendo do quanto você se dedica. Eu acho que isso é um sistema que obviamente veio para ficar e a gente tem que pensar do ponto de vista de como a gente vai repensar o mundo do trabalho a partir dessa nova concepção. 

Não tem mais volta. A gente está caminhando cada vez mais para que cada um seja um CNPJ. A gente não é mais um CPF. Nós somos todos CNPJs, nós somos todos esse corpo-empresa que vai caminhando de acordo com essa engrenagem onde nós determinamos de uma certa maneira - a gente acredita que determina - como que vai ser esse funcionamento do trabalho para nós, de acordo com a nossa realidade. com a nossa dinâmica, só que a gente na verdade não escolhe, né?

Mas eu acho que também tem movimentos interessantes. Os jovens estão entendendo que o trabalho, não é porque a gente cresceu ouvindo esse discurso 'Deus ajuda quem madruga', que tem toda lógica do espírito do capitalismo, quando Weber traz isso, que é a noção de que o trabalho é o que dignifica o homem.  Eu não estou dizendo que não, mas a gente entende o trabalho como uma extensão absoluta da vida e como se a vida fosse toda em torno disso. E muitos jovens hoje estão chegando a uma conclusão de que eles querem viver de uma outra maneira, que o trabalho é importante, porém ele não é a vida por completo.

E aí tem movimentos. Tem esse movimento que a gente tem que inclusive retomar, eu acho que ele perdeu um pouco a força, que é do 4x3, a gente ter essa coisa de lutar para que a gente possa ter uma jornada de trabalho menos exaustiva. Isso tudo vai ter um impacto, 

Quando a gente pega esses dados da depressão, da ansiedade, da epidemia no Brasil - e aí é bom lembrar que o Brasil é campeão no mundo de depressão e ansiedade - essa juventude está sendo diretamente afetada por isso. Então as próprias empresas estão pensando maneiras como fazer para resolver esse problema, porque é um problema que gera também um custo para o próprio sistema, para a própria engrenagem. É por isso que a gente precisa lutar para que a gente tenha ações efetivas que não sejam só medicalização. Se não, você diz: 'bom, o cara está incapacitado, sai, toma um remedinho e volta para a mesma engrenagem', você fica transformando todo mundo em zumbi.

É contra isso que a gente precisa lutar, nisso que a gente precisa atuar, sobretudo com a juventude para a gente pensar em outras formas de se organizar em torno disso, de lutar em relação a essas pautas. Mas eu acho que a gente pode trazer algumas coisas importantes desses movimentos dos jovens, sobretudo o 4x3 para pauta. 

E aí quando a gente vai falar de saúde pública, quando a gente vai falar do problema de saúde mental, a gente vai trazer o Ministério do Trabalho - como o próprio agora já falou que ia fazer algumas ações - mas a gente tem que trazer uma série de outros ministérios. A gente não pode tratar isso só como problema de saúde pública e transformar isso em uma questão específica do Ministério da Saúde.

A gente tem que tratar isso com um problema que é político. Não é um problema como nos Estados Unidos, ele está se tornando um dos maiores problemas políticos do país, que atinge principalmente os jovens [negros]. 

Hoje, se a gente for ver, por exemplo, o número de suicídios, que só aumenta no Brasil, a maioria das pessoas que comete suicídio é de jovens negros. E qual é a relação disso? É falta de perspectiva, tem uma relação direta com a desigualdade. Além do racismo que ela sofre na sociedade, é o próprio problema da falta de perspectiva em torno das questões concretas da vida e da realidade. Como é que se sustenta,Como é que paga as contas? Então, o suicídio tem uma relação direta com esse que é um problema político, com esse que é um problema, enfim, das questões do mundo do trabalho, do capitalismo contemporâneo e de como ele promove essa exploração de tal forma que a gente tem aí uma grande epidemia desses problemas no Brasil.

Confira a entrevista completa do ao Fórum Onze e Meia

Siga o perfil da Revista Fórum e da jornalista Júlia Motta no Bluesky.

 

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