No centro do debate sobre o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, chamado de PL do Estupro, e da nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), o procedimento de assistolia fetal é defendido por algumas entidades de saúde já que é o único procedimento a ser realizado em gestações acima de 20 semanas, que ocorrem, muitas vezes, em mulheres e crianças vítimas de abuso sexual.
A assistolia fetal consiste na aplicação de medicamentos, geralmente cloreto de potássio, para interromper os batimentos cardíacos do feto antes da sua retirada do útero. O procedimento é usado para a realização de aborto legal após 20 semanas de gestação e é recomendado pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS).
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Com base em comprovações científicas, o órgão publicou um protocolo, em junho de 2023, em que recomendava a assistolia fetal para o aborto legal acima de 20 semanas de gestação, após revisão de toda a literatura mundial sobre o tema. O procedimento também é respaldado por outros protocolos nacionais e internacionais.
Um dos principais pontos para a recomendação do procedimento é que ele evita o desgaste emocional e físico dos médicos e da própria gestante. O método também garante maior segurança, já que gravidezes mais avançadas têm maiores riscos. Vale ressaltar que a assistolia fetal é usada, principalmente, em gestações resultantes de estupro que, na maioria dos casos, acontecem com crianças de até 13 anos, que não têm formação corporal adequada para a gravidez.
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Helena Piragibe, conselheira nacional de saúde pela União Brasileira de Mulheres (UBM) e coordenadora da Comissão intersetorial da Saúde das Mulheres do Conselho Nacional de Saúde, defende a realização da assistolia fetal e traz para o debate outro ponto que vai além do procedimento. Ela reforça que o ideal não seria deixar a gestação chegar ao período avançado, onde a assistolia é a única opção, e questiona os fatores que colaboram para esse cenário.
Ela cita, por exemplo, a falta de hospitais que realizam o aborto legal no país, o que dificulta que mulheres e crianças vítimas de estupro consigam fazer o procedimento antes da gestação avançar acima de 20 semanas. Além disso, mesmo quando conseguem acessar hospitais que realizam o aborto legal, encontram uma série de dificuldades e obstáculos.
Como relatado pela defensora Livia Almeida, da Defensoria da Bahia, e pela advogada e fundadora do Projeto Vivas, Rebeca Mendes, em entrevista à Fórum, mulheres e crianças são obrigadas a enfrentar diversas violências no caminho até o aborto legal.
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Essa mesma realidade é exposta por Helena Piragibe. "O procedimento requer uma preparação e disposição que não são encontradas nos hospitais. Além disso, muitos médicos alegam objeção de consciência e se abstém de cumprir a lei. Nós vivemos em um sistema onde a lei existe, mas não é executada", afirma.
Para a conselheira, é uma hipocrisia o fato de defenderem que uma criança seja punida como se realizasse um homicídio ao abortar após um estupro, enquanto não discutem a defesa dessas próprias crianças, que são as maiores vítimas de abuso sexual. "Como a gente vai pedir que uma criança de 9 anos reconheça que está grávida? É uma violência".
A maioria dos casos de abuso contra crianças acontece na própria casa da vítima e pelos próprios pais e padrastos, além de outras figuras masculinas da vida dela. "A criança é cerceada no seu direito de defesa por medo, porque existe todo um véu para encobrir aquele crime", reforça ela.
Nesses casos, a vítima não tem como saber nem que foi abusada e muito menos que está grávida. Por isso, normalmente, as gestações em crianças avançam acima de 20 anos. "Então, nesses casos, a assistolia fetal é o último recurso".
Mesmo quando descobrem que estão grávidas, essas crianças são desacreditadas e revitimizadas, fatores que colaboram para impedir que a gravidez não avance acima de 20 semanas. Além disso, quando conseguem comunicar o abuso a autoridades, essas vítimas não recebem nenhum tipo de cuidado, segundo relatos da conselheira. "Ninguém quer atender essa criança e vão passando de hospital em hospital. Ninguém dá informações necessárias para ela resolver essa questão".
"O maior crime mesmo é querer equiparar o aborto legal ao homicídio. Na verdade, ninguém está se importando com essa criança, em ver como retirar ela do lar onde foi abusada e em criar políticas públicas para afastar a família do abusador".
Por isso, para Helena, o PL 1904 representa "uma misoginia e um ódio acirrado às mulheres".
A conselheira ainda cita dados assustadores: em 2022, foram mais de 14 mil gravidezes entre meninas com idade até 14 anos no país, e apenas 4% delas tiveram acesso ao aborto legal.
Por conta de todo esse cenário, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) foi o primeiro órgão a se manifestar contra a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a assistolia fetal, divulgada em março deste ano, e que deu origem ao PL 1904.
Na nota, o CNS considera que "o Conselho Federal de Medicina (CFM) viola os Direitos Humanos das Mulheres, o Código Penal de 1940, a Constituição Federal de 1988, os Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário e outros ordenamentos jurídicos ao proibir médicos de realizarem a assistolia fetal". O órgão também cita os dados que expõem a realidade cruel de violência sexual contra mulheres e crianças no Brasil.
Novamente, após a aprovação do pedido de urgência ao PL 1904, o CNS veio a público repudiar a decisão, reafirmando a defesa da assistolia fetal e reforçando que o projeto criminaliza a vítima.
O PL 1904/2024
O PL 1904/2024,de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), prevê a equiparação de uma cirurgia de aborto a um homicídio caso a gestação já esteja com mais de 22 semanas, mesmo em casos de estupro.
Assim, o projeto pode dar uma pena de 20 anos a mulheres e crianças que realizarem o aborto legal com o procedimento de assistolia fetal. A pena chega a ser maior do que a dos próprios abusadores.
Apesar disso, o PL teve seu pedido de urgência aprovado no dia 12 de junho, na Câmara dos Deputados, por parlamentares bolsonaristas e da bancada evangélica.
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Após a aprovação, o projeto ganhou repercussão e repúdio nacional por diversas entidades feministas, políticos, sociedade civil e membros do governo.