Os defensores do PL do Estupro determinaram que 22 semanas de gestação é o tempo máximo que a sociedade brasileira deve tolerar para conceder a mulheres e meninas o direito de acessar o aborto legal. Depois disso, vira uma criminosa, com pena de até 20 anos de prisão, enquanto a do estuprador é de 6 a 10 anos.
Numa lógica, no mínimo perversa, os fundamentalistas responsabilizam as mulheres e as crianças pela demora em realizar a interrupção da gravidez nos casos de estupro. Como se estivessem "empurrando com a barriga", ou de "oba oba", ou por ser "abortista". O inferno não é mais limite para as atrocidades. Sobre o crime que resultou nessa situação, nem um pio. A epidemia de pastores pedófilos e violadores? Silêncio.
Para os defensores do PL do Estupro, o problema não é a violência sexual e sim o tempo que a vítima consegue acessar os serviços de aborto legal. Não importa as circunstâncias em que o crime contra mulheres e meninas acontece e muito menos como fazer para acelerar esse atendimento. Não é razoável que uma mulher e uma menina vítima de estupro esperar cinco meses para tentar tocar a vida depois do horror.
O que leva essa demora? Pela lei brasileira, qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar aborto legal. As vítimas tem o direito a atendimento gratuito no SUS, que inclui: o recebimento de tratamentos contra DSTs, a pílula do dia seguinte, apoio psicológico e, em casos de gravidez, o direito ao aborto legal.
Não é necessária a apresentação de um boletim de ocorrência, exame do IML ou mesmo autorização judicial, sendo a palavra da mulher o suficiente. Ao chegar no serviço, a mulher deve ser recebida por uma equipe multidisciplinar e o único documento que assinará é o termo de consentimento escrito.
Na prática, muitas mulheres e meninas fazem peregrinação para serem atendidas. Um levantamento do G1 de 2022, mostrou que quatro em cada 10 mulheres precisaram sair da cidade em que moram com percursos que chegaram a mil quilômetros. O site Mapa do Aborto Legal, da Artigo 19, traz uma lista de 33 hospitais indicados para realização do aborto legal pelo Ministério da Saúde. E outros 24 que não fazem.
O levantamento Acesso à informação e aborto legal - mapeando desafios nos serviços de saúde mostra um cenário difícil para acessar esse direito. Em contato com hospitais públicos sobre o serviço, a pesquisa recebeu respostas absurdas. Uma série de hospitais informou não fazer o atendimento “pois é crime”, ignorando a legislação. Houve respostas como “deus me livre!”, “claro que não faz aborto”, “aborto é crime e aqui não defendemos direitos humanos para bandido” e “nenhum médico realizará o procedimento”.
Há ainda hospitais que prestaram informações inverídicas, como a necessidade de se apresentar Boletim de Ocorrência para fazer o procedimento ou até mesmo a necessidade de se informar o número do BO para dar andamento à ligação. Um hospital perguntou se a vítima poderia provar que tinha sido estuprada e outro perguntou se ela conhecia o autor da violência.
Enquanto isso vão se passando as semanas.
O Mapa do Aborto Legal foi uma das únicas páginas que eu encontrei com informações simples sobre como fazer o aborto legal e surgiu justamente para suprir uma lacuna de informação identificada no relatório “Breve Panorama sobre Aborto Legal e Transparência no Brasil”, lançado em dezembro de 2018: a ausência de informações acessíveis sobre saúde sexual e reprodutiva nos portais públicos de saúde.
Embora seja de seis anos atrás, a pesquisa desenha a paisagem de dificuldades para meninas e mulheres acessarem o aborto legal. Entre as 27 unidades da Federação, 17 não tinham páginas específicas dedicadas à saúde da mulher. Dos órgãos de saúde estaduais, 20 não informam as situações em que o aborto é legal no Brasil. Entre as capitais, apenas um site informava todas as situações em que a interrupção da gestação é legal.
Outra barreira para atrasar o acesso ao aborto legal é negar esse direito. Por exemplo, o caso de uma menina de dez anos, grávida, que foi impedida de acessar o direito dela no Espírito Santo e foi fazer o procedimento em Pernambuco. Em Recife transformaram a vida da menina, da família e da equipe de saúde em um inferno. O aborto da menina ocorreu no dia 17 de agosto de 2020. Além da ação dos médicos contrários ao procedimento, a criança e a família foram alvo de uma campanha de movimentos bolsonaristas católicos e evangélicos.
O PL do Estuprador desconsidera a razão pela qual o aborto legal vigora há 80 anos: a violência sexual contra mulher e criança. A proposta coloca mais uma camada de maldade nesse pesadelo que apenas em 2022 chegou a 75 mil casos de estupro – o maior número da série histórica, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Do total, seis em cada dez vítimas eram crianças de até 13 anos.
Quando o debate sobre o PL do Estupro envereda para a pauta moral, de certo e errado, bom e mau, ignora a vida das mulheres e meninas vítimas de uma crueldade desse crime em que 68% dos casos ocorreram na residência das vítimas e, em 64%, por violadores familiares.
As principais vítimas de estupro no Brasil são meninas menores de 14 anos, abusadas por pais, avôs e tios e também pastores. São essas meninas que mais precisam do serviço do aborto legal, e as que menos têm acesso a esse direito garantido desde 1940 pela legislação brasileira.
Quando o pesadelo envolve crianças e adolescentes, só conseguem identificar a violência sexual com educação adequada sobre o tema, um ponto que os defensores do PL do Estupro chamam de 'ideologia de gênero'. A extrema direita transformou a urgência em fortalecer a educação sexual nas escolas em ladainha reacionária. O resultado são esses números estarrecedores de violência sexual contra crianças.
Não é por acaso que os movimentos feministas e de mulheres, além de PL do Estuprador, chama também o Projeto de Lei 1.904/2024 de ‘PL da Gravidez Infantil'". Dados do SUS mostram que, em média, 38 meninas de até 14 anos se tornam mães a cada dia no Brasil, o que mostra o desafio que é para uma menina acessar o direito ao aborto legal. Em 2022, foram mais de 14 mil gravidezes entre meninas com idade até 14 anos no país.
O debate que tomou conta das redes abriu a fossa dos argumentos mais reacionários e misóginos de sempre. Não existe nenhum interesse em vidas por essa extrema direita, o interesse é o caos. As leis já mandam nos nossos úteros desde sempre, agora, querem nos impor ao fundamentalismo bolsonarista.