Relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, que criminaliza a posse e o porte de drogas, o deputado bolsonarista Ricardo Salles (PL-SP) usou uma antiga fake news sobre a maconha para pedir a aprovação da medida, que será analisada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara nesta quarta-feira (4).
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Repetindo a mentira de André Mendonça, o ministro "terrivelmente evangélico" em votação sobre a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Droga no Supremo Tribunal Federal (STF), afirma que o uso de "qualquer espécie de droga" - incluindo a maconha - "é a porta de entrada para o vício em outras substâncias ilícitas mais prejudiciais à saúde com o passar dos anos pela curiosidade em experimentar novas 'sensações'”. A justificativa é apresentada sem qualquer embasamento científico.
Em voto constrangedor no STF, Mendonça também recorreu à máxima, dizendo que "fumar maconha é o primeiro passo para o precipício".
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"O voto do ministro André Mendonça foi uma cena, acredito, constrangedora do ponto de vista científico de quem está envolvido na pesquisa sobre o tema de drogas. Ele citou alguns professores e depois saiu soltando várias referências sem conseguir apresentar as fontes, reforçando apenas estereótipos a partir de palavras-chave muito dramáticas, que eram suicídio, gravidez, vício, dependência", disse à Fórum Eduardo Ribeiro, cofundador e diretor executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas. "Muitas fake news utilizadas no voto de um ministro do Supremo", emendou.
Estudos e especialistas reiteram que a justificativa é mais um mito associado à planta, que foi criminalizada no início do século XX como uma forma de perseguir principalmente a população negra.
Em entrevista ao PodPah em 2022, o médico Drauzio Varella foi indagado se a maconha "pode ser considerada porta de entrada para drogas mais pesadas, como o crack".
"Não é. Tem vários estudos mostrando que não é. Vejo as pessoas falando para crianças: 'Droga mata, você vai morrer.' Isso é mentira. Já viram alguém fumar um baseado e morrer de fome?", disse o médico.
Segundo estudo do Programa de Atendimento a Dependentes Químicos da Universidade de São Paulo (Unifesp), é incorreto associar a maconha como porta de entrada para outras drogas.
A pesquisa mostra que não há indícios de que o uso de maconha representaria um estímulo para o experimento de outras drogas. De acordo com o estudo, a maioria dos usuários fazem uso esporádico da erva e 90% deles abandonam a maconha depois de algum tempo.
Crimes
Salles ainda afirma em seu relatório que "há grande responsabilidade dos usuários sobre os elevados índices de criminalidade já que contribuem ativamente para a manutenção desse sistema, o que leva ao cometimento de outros crimes mais graves, tais como: tráfico de armas, prostituição, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, homicídios etc".
Os estudos, no entanto, mostram que é exatamente o contrário: a criminalização da droga é o que provoca o agravamento de uma série de crimes e o encarceramento em massa.
Em entrevista à Fórum, Andrea Galassi, professora da Universidade de Brasília (UnB), conselheira da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD) e membra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) ressalta a gravidade da PEC, que vai oficializar a existência de "cidadãos de segunda classe".
"Quando me refiro ao cidadão e à cidadã, me refiro às pessoas mais vulneráveis nessa história toda, que são as pessoas de baixa renda, as pessoas que moram em periferias, as pessoas que são negras e pardas. É uma PEC que cria, sela, coloca no texto constitucional que a gente tem cidadãos de segunda classe no país. A gente agrupa as vulnerabilidades que essas pessoas já têm, que são negras, que são pobres, que vivem em zonas periféricas. E aí eu coloco, então, a criminalização dessas pessoas que, eventualmente, portam drogas para uso pessoal. E aí eu criminalizo, de verdade, a pobreza e as vulnerabilidades".
Andrea Galassi afirma, ainda, que entre as consequências que a PEC das Drogas deve trazer está a insegurança jurídica com relação à diferenciação entre usuários e traficantes. Segundo a professora, se há problemas com a Lei de Drogas, os parlamentares deveriam discutir ajustes que a tornassem mais adequada, colocando critérios objetivos para distinguir quem é usuário e quem atua para o tráfico, conforme outros países ao redor do mundo vêm fazendo.
"Em vez de corrigir algo que a história demonstrou que não estava adequado, o que a gente vê é o contrário, quer dizer, a piora. Usaram de uma medida absolutamente irresponsável, repito, equivocada para tratar de uma questão que deveria estar no âmbito legal e não no âmbito constitucional. Colocar na Constituição um texto como esse é um completo disparate e a gente vai sofrer muito as consequências se essa PEC for promulgada. A gente vai ter mais ingerência policial porque o policial vai se sentir muito mais autorizado a fazer fazer patrulhamentos e buscar identificar quem são as pessoas que estão ali portando drogas e categorizá-las como criminosas, como vem acontecendo justamente no âmbito da Lei de Drogas, que não estabelece os critérios e que, então, deixa os critérios serem subjetivos", elucida Andrea.
"E aí as polícias vão ficar muito mais autorizadas a fazer essas incursões em comunidades pobres para pegar pessoas pobres portando poucas quantidades de substâncias e assim, nada de investimento em investigar crimes, investigar justamente a origem do dinheiro do tráfico, investigar os grandes traficantes. As polícias já atuavam nessa perspectiva. Vai piorar. Nós vamos observar, assim, o desastre que vai ser caso essa PEC seja promulgada, considerando que a gente vai ter muito mais prisões, muito mais pessoas negras, pobres, com baixa escolaridade, presas. É a criminalização absoluta da pobreza".