Representantes de entidades ligadas aos direitos humanos e à pauta antirracista participam, nesta quarta-feira (22), de uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados para debater se é constitucional ou não criminalizar o porte de drogas para uso pessoal.
A criminalização do porte de qualquer tipo de droga para consumo próprio, independente da quantidade, foi aprovada a toque de caixa através da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/23 no Senado. Para organizações antiproibicionistas e especialistas, a medida deve penalizar ainda mais o usuário e trazer inúmeras consequências negativas, entre elas intensificar a superlotação do sistema carcerário brasileiro e fazer o país retroceder nas políticas relacionadas ao uso de substâncias hoje consideradas ilegais.
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Estarão presentes na audiência pública da CCJ, convocada pelo presidente da comissão, o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), representantes da sociedade civil e organizações contrárias à PEC 45, entre eles Nathália Oliveira, diretora executiva da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas e coordenadora da Comissão de Legislação, Normas e Articulação Interinstitucional do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad), que falará em nome da Plataforma Brasileira de Política de Drogas; Silvia Souza, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, e Gabriel Sampaio, advogado e diretor de Litígio Estratégico da Conectas Direitos Humanos.
A favor da proposta que criminaliza o porte de drogas para uso pessoal estão confirmados o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS); Roberto Motta, ex-secretário de estado e escritor, e Ronaldo Laranjeiras, presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina e professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo.
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Subjetividade
A PEC 45 vem sendo criticada por entidades, especialistas e parlamentares do campo progressista principalmente por conta de sua subjetividade e falta de critério para diferenciar usuário de traficante, o que deve gerar insegurança jurídica e impactar mais pessoas negras, pobres e periféricas. Para a Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, a proposta carrega "caráter racista".
Segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgado em 2023 e que será destacado pela Iniciativa Negra no debate a ser realizado na Câmara, 68% das pessoas encarceradas no Brasil são negras. Em São Paulo, a pesquisa Liberdade Negra Sob Suspeita, lançada pela Iniciativa Negra em novembro de 2023, apontou o tratamento diferente dado pelo sistema a pessoas negras e pessoas brancas durante abordagens e apreensões de entorpecentes, e demais instâncias.
Do total de casos analisados no estado de São Paulo, 54% dos encarcerados são negros, "número que poderá aumentar consideravelmente com esta proposta de criminalização", alerta a entidade.
"Chama a atenção que 58% das prisões são de jovens com idade entre 18 e 21 anos e, destes, 51% não têm antecedentes criminais", diz ainda a Iniciativa Negra.
Entenda a PEC 45
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, conhecida como PEC das Drogas, aprovada em primeiro e segundo turno pelo Senado Federal em abril, deve piorar o que já era ruim. O projeto, apresentado pelo presidente da casa legislativa, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), propõe alterar o artigo 5º da Constituição Federal para criminalizar a posse e o porte de qualquer droga, independentemente da quantidade.
A PEC, se aprovada na Câmara dos Deputados e, depois, promulgada, não alterará a Lei de Drogas, que prevê a diferenciação entre traficantes e usuários e, em tese, não impõe penas de prisão para quem usa entorpecentes para fins pessoais. Na prática, entretanto, essa diferenciação não é feita quando pessoas pretas e pobres são flagradas com pequenas quantidades de drogas.
A promulgação da PEC tornaria o cenário ainda pior pois não faz essa distinção entre usuário e traficante e, ainda mais grave, insere a criminalização do porte e posse - isto é, do próprio usuário - na Constituição Federal de 1988. A proposta foi votada a toque de caixa, sem debates detalhados sobre tudo o que envolve o tema, em meio a um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que pode, justamente, descriminalizar a posse e o porte de maconha para uso pessoal. A investida do Senado é vista como uma afronta à Corte.
É o que explica, em entrevista à Fórum, Andrea Galassi, professora da Universidade de Brasília (UnB), conselheira da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD) e membra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
"A aprovação dessa PEC veio de uma maneira muito avassaladora, no pior sentido que a gente possa entender dessa palavra. Uma tramitação relâmpago, um absoluto descuido, sem nenhum interesse em querer debater, nenhum interesse em querer olhar a complexidade do tema. Isso foi totalmente voltado para uma questão que é política, que é de interesses políticos e pessoais, numa briga institucional entre poderes da República. E o cidadão saiu mais prejudicado do que já era", afirma.
A professora destaca, ainda, a gravidade diante do fato de que a criminalização da posse e do porte de drogas será colocada no texto constitucional. Segundo Andrea Galassi, isso fará com que o Brasil oficialize que há "cidadãos de segunda classe" no país.
"Quando me refiro ao cidadão e à cidadã, me refiro às pessoas mais vulneráveis nessa história toda, que são as pessoas de baixa renda, as pessoas que moram em periferias, as pessoas que são negras e pardas. É uma PEC que cria, sela, coloca no texto constitucional que a gente tem cidadãos de segunda classe no país. A gente agrupa as vulnerabilidades que essas pessoas já têm, que são negras, que são pobres, que vivem em zonas periféricas. E aí eu coloco, então, a criminalização dessas pessoas que, eventualmente, portam drogas para uso pessoal. E aí eu criminalizo, de verdade, a pobreza e as vulnerabilidades".
A socióloga Nathália Oliveira, cofundadora da organização Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas e coordenadora da Comissão de Legislação, Normas e Articulação Interinstitucional do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad), compartilha da mesma opinião.
Também em entrevista à Fórum, Nathália aponta que a aprovação da PEC 45 representa uma "queda de braço" entre o Senado e o STF e que o debate feito na casa legislativa sobre o tema foi "leviano", uma vez que não está em jogo criminalizar ou descriminalizar as drogas.
"Recebo a aprovação desta PEC com bastante indignação pelo fato dos nossos parlamentares usarem uma pauta tão cara pra população negra e para a população pobre desse país para fazer uma queda de braço com o STF. Além disso, acho que os senadores foram absolutamente irresponsáveis na discussão. Foram levianos porque a PEC não trata de criminalizar ou descriminalizar, o que está em debate no Brasil não é a liberação das drogas e os senadores foram levianos, foram duros com a população mais pobre que mais precisa da garantia de direitos", pontua a socióloga.
"Ainda não dá para a gente prever quais são as consequências para a sociedade, mas, observando o discurso dos senadores, é possível ver que eles defendem apenas alternativas à prisão, pensando em tratamentos compulsórios, em comunidades terapêuticas, inclusive, que é uma coisa perigosa e um processo de manicomialização, novamente, do nosso país, e com certeza o aumento do encarceramento de pessoas negras e pobres, como já aconteceu com a lei de 2006".
Insegurança jurídica
Andrea Galassi afirma, ainda, que entre as consequências que a PEC das Drogas deve trazer está a insegurança jurídica com relação à diferenciação entre usuários e traficantes. Segundo a professora, se há problemas com a Lei de Drogas, os parlamentares deveriam discutir ajustes que a tornassem mais adequada, colocando critérios objetivos para distinguir quem é usuário e quem atua para o tráfico, conforme outros países ao redor do mundo vêm fazendo.
"Em vez de corrigir algo que a história demonstrou que não estava adequado, o que a gente vê é o contrário, quer dizer, a piora. Usaram de uma medida absolutamente irresponsável, repito, equivocada para tratar de uma questão que deveria estar no âmbito legal e não no âmbito constitucional. Colocar na Constituição um texto como esse é um completo disparate e a gente vai sofrer muito as consequências se essa PEC for promulgada. A gente vai ter mais ingerência policial porque o policial vai se sentir muito mais autorizado a fazer fazer patrulhamentos e buscar identificar quem são as pessoas que estão ali portando drogas e categorizá-las como criminosas, como vem acontecendo justamente no âmbito da Lei de Drogas, que não estabelece os critérios e que, então, deixa os critérios serem subjetivos", elucida Andrea.
"E aí as polícias vão ficar muito mais autorizadas a fazer essas incursões em comunidades pobres para pegar pessoas pobres portando poucas quantidades de substâncias e assim, nada de investimento em investigar crimes, investigar justamente a origem do dinheiro do tráfico, investigar os grandes traficantes. As polícias já atuavam nessa perspectiva. Vai piorar. Nós vamos observar, assim, o desastre que vai ser caso essa PEC seja promulgada, considerando que a gente vai ter muito mais prisões, muito mais pessoas negras, pobres, com baixa escolaridade, presas. É a criminalização absoluta da pobreza".
Retrocesso
A socióloga Nathália Oliveira considera que o legislativo brasileiro caminha para endurecer ainda mais a criminalização dos usuários de drogas pois há uma "reação supremacista, de uma onda mundial, não só no Brasil, mas no mundo, de reação à conquista de direitos dos sujeitos negros e também das populações minorizadas".
"O legislativo brasileiro caminha para um passo conservador, um retrocesso conservador não só na política de drogas, mas também em outras pautas. Além disso, as relações de poder no Brasil necessitam da manutenção das hierarquias raciais e a guerra às drogas é uma estrutura perfeita para a manutenção da violência", analisa.
Já Andrea Galassi chama atenção para o retrocesso na PEC das Drogas destacando que "nenhum país do mundo tem algo como isso", se referindo a colocar a criminalização dos usuários de drogas na Constituição.
"A gente cria mais um case brasileiro, um case de atraso, um case de retrocesso, um case que nos envergonhe enquanto cidadãos", critica.
Segundo a professora, a sociedade brasileira é "bastante desinformada" com relação ao tema das drogas e há "contextos muito desfavoráveis na nossa política de espaços para debater" a questão, visto que nunca houve, no país, um cenário favorável para isso.
"Somos um país que temos uma ampla maioria bastante conservadora nas ideias, nos costumes. E a gente tem muita dificuldade de debater abertamente, de forma pragmática, essas questões. E o próprio avançar da extrema-direita no mundo se deu aqui. Quando a gente vai coloca um tema como esse para ser discutido, é um tema que vai ser pego e vai ser colocado nesse pacote de moral, costumes e nessa perspectiva demagógica. Que não é uma perspectiva científica, não é uma perspectiva baseada em evidências, não é uma perspectiva pragmática de tentativa de resolução de problemas reais. O mundo desenvolvido caminha em um sentido, ou mesmo na América Latina, em que a gente consegue ter cenários muito avançados. E o Brasil sendo dos poucos que ainda criminaliza o usuário".
Entidades como a Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD) e a Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas, das quais fazem parte Andrea Galassi e Nathália Oliveira, pretendem, caso a PEC das Drogas seja aprovada na Câmara, levar a questão ao STF.
Debate no STF
A PEC 45/2023 foi aprovada no Senado enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) julga, justamente, a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.
Em 6 de março, o tema retornou à pauta da Corte após pedido de vista do ministro André Mendonça, em agosto de 2023. Neste momento, o placar está em 5 a 1 a favor da descriminalização - o que significa que basta apenas mais um voto favorável para que o porte de maconha para consumo próprio deixe de ser criminalizado. Votaram a favor os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e a ministra recém-aposentada Rosa Weber; enquanto Cristiano Zanin votou contra. O ministro Dias Toffoli, entretanto, pediu vistas e o julgamento foi suspenso por 90 dias.
Apesar do julgamento tratar do porte de drogas como um todo, os ministros que votaram a favor da descriminalização o fizeram apenas com relação maconha, exceto Gilmar Mendes. A análise do tema foi iniciada pelo STF em 2015 a partir do julgamento da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), baseado em um fato concreto de prisão por porte de 3g de maconha.
O STF, porém, não vai "legalizar a maconha" ao final do julgamento, mesmo se houver mais um voto favorável à descriminalização. Isso porque descriminalizar o porte para consumo pessoal não significa a legalização total, visto que a produção, venda e distribuição de maconha ou de qualquer droga seguem proibidos no Brasil.
O efeito prático, caso o porte para consumo próprio seja, de fato, descriminalizado, seria apenas impedir que pessoas flagradas portando pequenas quantidades de maconha, desde que comprovado que é para uso pessoal, não sejam penalizadas. Atualmente, a Lei de Drogas considera crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal e prevê penas como prestação de serviços à comunidade.
A interpretação do que é quantidade para "consumo pessoal" e o que configura tráfico, entretanto, é feita, a princípio, pelas polícias, que recorrentemente consideram pretos e pobres como traficantes e pessoas brancas, de classe média ou alta como usuários. O julgamento do STF, portanto, atacaria este cenário e definiria, exatamente, qual a quantidade de droga que pode ser considerada para uso pessoal.
Maconha no mundo
Nos últimos anos, inúmeros países legalizaram ou descriminalizaram o uso recreativo da maconha, entre eles estão os Estados Unidos (em alguns estados), Canadá, México, Jamaica, Uruguai, Holanda, Alemanha, Espanha, Malta, Geórgia, Israel, África do Sul e Tailândia.