*Matéria atualizada em 1/07/2024 para correção de informação
A base do prefeito Ricardo Nunes (MDB) na Câmara Municipal de São Paulo aprovou na última quarta-feira (16) o Projeto de Lei 445/2023, conhecido como PL da Fome, em apenas 24 segundos. O texto impõe multas de até R$ 17 mil para quem doar alimentos à população em situação de rua, em punição que viria contra o descumprimento dos requisitos determinados pelo projeto para que as doações ocorram.
Te podría interesar
A aprovação à jato ocorreu por conta de um acordo entre os vereadores que pretendia desafogar uma série de votações. O problema é que entre essas votações estava o lamentável projeto de autoria do vereador Rubinho Nunes (União), que recentemente conquistou holofotes por usar a tribuna para perseguir o padre Júlio Lancellotti e o seu trabalho de apoio à população de rua de São Paulo.
É importante frisar que as bancadas do PT e do Psol foram contrárias ao acordão que permitiu a aprovação por votação simbólica, em menos de um minuto, do PL da Fome. No entanto, as bancadas somadas contam com 14 vereadores dos 55 que ocupam as cadeiras da Câmara Municipal paulistana.
Te podría interesar
São eles: Alessandro Guedes (PT), Arselino Tatto (PT), Celso Giannazi (Psol), Elaine do Quilombo Periférico (Psol), Helio Rodrigues (PT), Jair Tatto (PT), João Ananias (PT), Jussara Basso (Psol), Luana Alves (Psol), Luna Zarattini (PT), Manoel del Rio (PT), Toninho Véspoli (Psol), Senival Moura (PT) e Silvia da Bancada Feminista (Psol).
Segundo as informações que constam, foram apenas esses os vereadores que se opuseram. Os parlamentares de todos os outros partidos aceitaram o acordo que passou o PL da Fome e uma série de outras votações de forma simbólica, em processo de articulação política capitaneado pelo prefeito Ricardo Nunes e sua base à semelhança do que ocorreu na privatização da Sabesp [clique aqui e relembre].
O prefeito ainda não se pronunciou diretamente sobre o projeto e a Prefeitura limitou-se a soltar uma nota na imprensa informando que se ocupará do texto somente quando ele chegar ao gabinete de Ricardo Nunes para ser sancionado.
Nos meios de comunicação hereditários o texto é rejeitado, mas seu autor acaba escondido nos parágrafos finais das reportagens. É ano eleitoral e o parlamentar faz parte da base aliada do atual prefeito, que tentará a reeleição.
Veja a lista dos vereadores que assinaram o acordo direta ou indiretamente
- Adilson Amadeu - União Brasil
- André Santos – Republicanos
- Atilio Francisco – Republicanos
- Aurélio Nomura – PSDB
- Beto do Social – PSDB
- Bombeiro Major Palumbo – PP
- Camilo Cristófaro – Avante
- Coronel Salles – PSD
- Cris Monteiro – NOVO
- Danilo do Posto de Saúde – PODE
- Dr. Nunes Peixeiro – MDB
- Dr. Sidney Cruz – Solidariedade
- Dra. Sandra Tadeu - União Brasil
- Edir Sales – PSD
- Eli Corrêa - União Brasil
- Eliseu Gabriel – PSB
- Ely Teruel – PODE
- Fabio Riva – PSDB
- Fernando Holiday – NOVO
- George Hato – MDB
- Gilson Barreto – PSDB
- Isac Félix – PL
- Janaina Lima – MDB
- João Jorge – PSDB
- Jorge Wilson Filho – Republicanos
- Marcelo Messias – MDB
- Marlon Luz – MDB
- Milton Ferreira – PODE
- Milton Leite - União Brasil
- Missionário José Olimpio – PL
- Paulo Frange – PTB
- Rinaldi Digilio - União Brasil
- Rodolfo Despachante – PSC
- Rodrigo Goulart – PSD
- Rubinho Nunes - União Brasil
- Rute Costa – PSDB
- Sandra Santana – PSDB
- Sansão Pereira – Republicanos
- Thammy Miranda – PL
- Xexéu Trípoli - PSDB
O que diz o projeto e o seu autor
"O objetivo do projeto é garantir protocolos de segurança alimentar na distribuição, prestigiando a higiene e acolhimento das pessoas vulneráveis durante a alimentação. O projeto também otimiza a assistência, pois evita desperdício e a venda de marmitas para compra de drogas devido à distribuição concentrada, o que prejudica a ajuda a pessoas em regiões mais afastadas da cidade”, disse Rubinho Nunes em nota divulgada para a imprensa que, segundo ele, “interpretou mal o texto”.
Segundo o projeto, uma pessoa física só poderá organizar e fazer as doações se tiver a autorização da Secretaria Municipal de Subprefeituras, da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) e cadastro de todos os voluntários na Smads. Além disso, estará responsável pela limpeza da área usada para a distribuição de alimentos, além de disponibilizar tendas, mesas, cadeiras, talheres, guardanapos e “demais ferramentas necessárias”.
As ONGs, por sua vez, terão ainda mais entraves burocráticos, além dos previstos para pessoas físicas, para realizar as ações. Precisarão ter a razão social registrada e reconhecida pelos órgãos competentes municipais, apresentar documento com informações sobre os quadros administrativos (com nomes, cargos e comprovações de identidade) e cadastros atualizados na Smads de voluntários e beneficiários, além de maiores exigências na apresentação da documentação da entidade.
Em ambos os casos, os locais de distribuição ainda precisarão passar por vistoria da Vigilância Sanitária. Oriundo do MBL e famoso pela recente perseguição ao Padre Júlio Lancellotti, Rubinho Nunes alega que pretende estabelecer “protocolos de segurança alimentar”. Mas, na prática, só está criando maiores entraves para que a população mais pauperizada tenha acesso à comida e desestimulando a cidadania que se organiza para atender essa população.
Aprovado em primeira votação na Câmara Municipal, o texto ainda precisaria passar por uma segunda votação antes de ir para a análise do prefeito Ricardo Nunes (MDB), de quem Rubinho Nunes é aliado. A oposição prometia trabalhar para barrar o projeto e, em meio a repercussão negativa, o próprio autor decidiu retirá-lo de pauta (veja abaixo).
A cruzada de Rubinho Nunes
A Polícia Civil de São Paulo instaurou um inquérito para investigar o vereador Rubinho Nunes por abuso de autoridade. O bolsonarista, um dos fundadores do grupo de extrema direita Movimento Brasil Livre (MBL), é acusado de utilizar suas prerrogativas de parlamentar municipal para perseguir o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua.
No início deste ano, Nunes tentou, por mais de uma vez, abrir Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) que tinham por objetivo criminalizar o trabalho do pároco junto a pessoas em situação de rua e dependentes químicos. Nesta empreitada de abrir a investigação, o vereador fez uma série de acusações contra Lancellotti, entre elas a de que o religioso teria cometido crimes sexuais.
Nenhum pedido de criação de CPI foi para frente, mas Rubinho Nunes seguiu permanentemente atacando Júlio Lancellotti através das redes sociais e incitando uma horda de extremistas a fazer o mesmo. O religioso, inclusive, já foi alvo de inúmeras ameaças, inclusive de morte.
Ao instaurar inquérito para investigar o vereador bolsonarista, a Polícia Civil atendeu a um pedido do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que acatou um pedido do Instituto Padre Ticão, que havia entrado com uma notícia-crime contra Rubinho Nunes por abuso de autoridade.
"Ele [Rubinho Nunes] usa de uma prerrogativa muito importante e muito cara ao poder Legislativo, que é a instauração de CPI, para banalizá-la. E é contra um padre defensor de direitos humanos que é idoso, o que também é um agravante. Não é porque tem uma pessoa tem uma prerrogativa ou um direito que ela pode sair exercendo de qualquer forma. Usar o expediente de uma CPI contra um CPF, um destinatário certo, está fora do objetivo da coisa. A nosso ver, a intenção é conseguir voto e visibilidade em um ano eleitoral", disse ao jornal Folha de S. Paulo o advogado André Jorgetto, que representa o Instituto Padre Ticão.
Segundo o promotor Paulo Henrique Castex, a Polícia Civil foi acionada para abrir o inquérito contra Rubinho Nunes pois "o caso merece ser melhor esclarecido, para apurar se houve conduta com repercussão criminal".
Em publicação nas redes sociais, Rubinho Nunes afirmou que o inquérito policial que pesa contra ele é uma "tentativa bizarra de intimidação para acobertar tanto o Sr. Lancelotti quanto as ONGs que atuam na região central e lucram com a miséria".
"Vou estudar uma Representação Criminal contra os responsáveis pelo instituto por Denunciação Caluniosa Eleitoral, haja vista que aguardaram a eleição se avizinhar para apresentar a estapafúrdia denúncia", escreveu ainda.
Padre Júlio Lancellotti se pronuncia sobre o PL da Fome
Em vídeo publicado na manhã desta sexta-feira (28) o padre Júlio Lancellotti tinha em mãos uma cesta de pães que distribuía para a população de rua quando comentou o projeto de lei. Mais do que falar sobre os ensinamentos de Jesus, que estendia a mão aos necessitados, o padre enviou um recado ainda mais potente: mostrou sua própria ação diária de apoio a essa população.
“Partilhar alimento e partilhar o pão é como Jesus fazia e como Jesus ensinou. O pão é para ser partilhado, porque pão partilhado tem gosto de amor e não de multa; Nós queremos pães para todos. Pão como direito, pão como vida. Pão partilhado”, declarou.
Em outra postagem, o padre havia compartilhado uma imagem de Santa Dulce dos Pobres e Santa Teresa de Calcutá, ambas conhecidas por suas ações de caridade. Na legenda, ele escreveu: “Se elas vivessem hoje em São Paulo… Poderiam ser multadas por alimentar os famintos".
ONGs, Defensoria e MP vão pra cima do projeto
Mas apesar da cruzada de Rubinho Nunes contra o padre Júlio e a população mais humilde e pauperizada da megalópole, e apesar de toda a movimentação do prefeito Ricardo Nunes no apoio e blindagem desse projeto de morte, há quem esteja contrário e se mobilizando para barrar a péssima ideia da direita.
Uma dessas pessoas é a ativista Amanda Paschoal, que acionou o Ministério Público, a Defensoria Pública de SP e o Conselho Nacional de Direitos Humanos nesta sexta-feira.
Na denúncia, Paschoal afirma ser “absolutamente inconstitucional e imoral que o Legislativo, ao invés de facilitar o acesso a um direito tão básico quanto à alimentação, restrinja de forma absurda, tentando, em verdade criminalizar essa atividade”. A ativista então solicita a abertura de um inquérito civil para acompanhar o avanço da proposta, além da realização de audiências públicas.
As ONGs também se manifestaram. Entrevistados pelo g1, Thiago Branco e Christian Braga, fundadores das ONGs Mãos na Massa e Instituto GAS, entraram em consenso. Os dois avaliam que o projeto de lei mostra o “desconhecimento do vereador” sobre a realidade da “população vulnerável da cidade”.
“Centenas de entidades fazem o trabalho que a prefeitura deveria fazer, mantendo essas pessoas vivas, alimentadas e protegidas do frio. São grupos de voluntários. Muitas dessas ONGs são formalizadas, mas muitas não são, justamente por se tratar de projetos formados por cidadãos que atuam onde o Estado falha”, disseram.
Eles também questionam como ficam as ações emergenciais, como a distribuição de agasalhos no inverno, se precisam de autorizações oficiais que podem não chegar a tempo. A principal crítica ficou por conta da multa de R$ 17 mil que, aplicada a organizações sem fins lucrativos, é classificada como um “disparate à humanidade e ao bom senso” e comprova que “o parlamentar só tem o objetivo de impedir o socorro humanitário a pessoas que ele, como representante do povo, deveria se importar”.
Oposição se articula
Vereadores da oposição como Luna Zarattini (PT) e Silvia Ferraro (covereadora do mandato coletivo da Bancada Feminista do Psol) prometeram nos meios de comunicação articular a derrubada do projeto.
“Ao invés do Projeto incentivar as ONGs no combate à fome e à miséria na nossa cidade, estimula penalidades e multas de até 17 mil reais através de muitos requisitos meramente burocráticos. O vereador em questão tem histórico de perseguir aqueles e aquelas que tem se indignado com o crescimento da população em situação de rua que chega a 52 mil pessoas. É um absurdo que neste cenário de abandono a grande preocupação seja com as ONGs e não com a fome. Por isso, nos posicionamos de forma contrária a este projeto e vamos buscar meios deste retrocesso não acontecer na nossa cidade”, disse Zarattini à Fórum.
Ferraro, por sua vez, falou à matéria supracitada do g1. “Este projeto tem o objetivo de impedir a distribuição de alimentos para a população em situação de rua na cidade de São Paulo. Coloca vários obstáculos irreais e várias burocracias para, na prática, acabar com a distribuição de comida para uma população extremamente vulnerável e famélica”, declarou.
E emendou, em seguida: “O vereador autor do projeto quer matar de fome a população em situação de rua, burocratizando e impedindo na prática, a distribuição de alimentos para uma população extremamente vulnerável”.
Rubinho Nunes não aguenta a pressão e tira o projeto de pauta
Após imensa onda de repúdio ao projeto, o vereador Rubinho Nunes retirou o PL de tramitação, nesta sexta-feira (28), no momento em que essa matéria estava sendo finalizada.
Em nota, ele justificou que a suspensão tem o objetivo de "ampliar o diálogo com a sociedade civil, ONG's e demais associações e buscar aperfeiçoamento do texto para que a finalidade do projeto seja atendida". Ou seja, em algum momento voltará à carga.
*Diferentemente do que havia sido publicado, o vereador Roberto Tripoli não votou a favor do "PL da Fome". Tripoli não estava presente na sessão que deliberou sobre o projeto e disse à reportagem da Fórum que é contra a proposta. "Ressalto ainda que tenho apoiado, anualmente, por meio de emendas parlamentares, entidades que atuam no combate à fome e para proporcionar uma vida mais digna às pessoas em situação de rua", diz o vereador.