O Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma decisão histórica nesta terça-feira (26): determinou, após formar maioria em julgamento, que portar pequenas quantidades de maconha para uso pessoal não configura crime. Foram 8 votos a favor da descriminalização e 3 contrários.
O julgamento, iniciado em 2015, se arrastou por quase 10 anos. A análise focou na constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), partindo de um caso concreto de prisão por porte de 3 gramas de maconha. A lei não especificava critérios claros para diferenciar usuários de traficantes, e o julgamento do STF buscou estabelecer essa diferenciação. A quantidade de maconha considerada para uso pessoal, ou seja, que não configura crime, foi fixada em 40 gramas ou seis plantas fêmeas.
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Embora a Lei de Drogas já não previsse a prisão de usuários, o porte de maconha ainda era considerado crime, resultando em inquéritos policiais e processos judiciais. Com a decisão do STF, o porte deixa de ser crime e, se um usuário for flagrado com pequena quantidade, estará cometendo apenas um ilícito administrativo, sujeito a sanções administrativas e socioeducativas, como advertências sobre os efeitos das drogas e participação em programas ou cursos educativos.
Dário de Moura, ativista pela legalização da maconha filiado ao PSOL, explica de maneira objetiva:
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"Se a polícia te pegar fumando e/ou carregando uma quantidade, você ainda será encaminhado para a delegacia e sua maconha será apreendida. Mas você NÃO SERÁ PRESO e isso é o que mais importa", esclarece.
"Ou seja, portar e fumar na rua CONTINUA ILEGAL e você pode receber medidas administrativas: assistir palestras, ser encaminhado para o SUS para tratar o uso problemático. O que é uma vitória, pois inibe o encarceramento e o uso é tratado na saúde, não pela polícia", prossegue Moura.
O STF não "legalizou" a maconha. A descriminalização do porte para consumo pessoal não implica a legalização total, pois a produção, venda e distribuição de maconha ou qualquer outra droga continuam proibidas no Brasil.
O efeito prático da decisão é impedir que pessoas flagradas portando pequenas quantidades de maconha, desde que comprovado o uso pessoal, sejam penalizadas. Atualmente, a Lei de Drogas considera crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal, prevendo penas como prestação de serviços à comunidade.
A interpretação do que é quantidade para "consumo pessoal" e o que configura tráfico, no entanto, é inicialmente feita pelas polícias, que frequentemente consideram pretos e pobres como traficantes e brancos, de classe média ou alta, como usuários. A decisão do STF visa alterar esse cenário, definindo exatamente qual quantidade de droga pode ser considerada para uso pessoal.
Em entrevista à Fórum, o advogado Max Telesca, especialista em Direito Penal e Processual Penal, afirma que o STF, na prática, acabou com o entendimento de que portar drogas, "apesar de não ser punível com prisão, é crime e, por essa razão, é obrigação do policial conduzir o autor do fato ao juízo competente ou à delegacia, para registro do termo circunstanciado e, em alguns casos, prisão".
"O STF, em realidade, busca sanar uma questão prática apontada pelas estatísticas forenses, mais especificamente da Associação Brasileira de Jurimetria, que mostrou que jovens negros e analfabetos, ao serem presos com quantidades de maconha com as quais alegaram ser apenas posse para consumo próprio, foram considerados traficantes, enquanto brancos com ensino superior foram, em sua maioria, considerados usuários", pontua Telesca.
Nathália Oliveira, cientista social, cofundadora e diretora executiva da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, diz em entrevista à Fórum que "a decisão acabou reduzindo a discussão apenas para cannabis e não para todas as drogas", mas pondera:
"Ao mesmo tempo, considero que o voto dos ministros sofreu uma qualificação substancial na luta por justiça racial ao trazer o reconhecimento público de que a proibição afeta desproporcionalmente a população negra."
Embate com o Congresso Nacional
A decisão do STF foi proferida em meio à tensão com o Congresso Nacional, já que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) aprovou recentemente um parecer do deputado Ricardo Salles (PL-SP) que endurece a criminalização dos usuários, independente da quantidade de drogas. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), por sua vez, criticou a decisão da Corte de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. O senador, autor da PEC 45, que prevê a proibição do porte de quaisquer quantidades de substâncias ilícitas e que já foi aprovada no Senado, afirmou que houve uma “invasão da competência do Congresso”.
Em entrevista ao repórter Henrique Rodrigues, da Fórum, diretamente do Fórum de Lisboa, o ministro Gilmar Mendes, do STF, explica que a Corte, na verdade, não invadiu as competências do Congresso Nacional, mas apenas "fez uma constatação de que a lei já despenalizava o uso".
"Nós estamos falando de uma lei de 2006. A prática policial redundou numa confusão entre o pequeno traficante e o usuário. A vida prática levou a isso. O STF considerou que era, então, importante fazer-se essa distinção. Porque, ao fim e ao cabo, nós tínhamos muitas prisões de pessoas que, a rigor, eram usuários. E isso, como sabem, causa um dano enorme à vida das pessoas. Leva pessoas que depois dependem, para sobreviver, de fazer pactos, ou como hoje usam a linguagem, ter que se faccionar, ter que aderir a uma facção."
Flávio Dino, também integrante do STF, vai na mesma linha em entrevista exclusiva à Fórum.
"O que o Supremo hoje está fazendo é interpretar certas lacunas visando que, de um lado, haja mais segurança jurídica, e do outro haja o fim de um efeito discriminatório em que pessoas de classes mais altas tem um tratamento e pessoas de classes mais pobres tenham outro tratamento, e isso de acordo com o nível de renda de cada um, e isso obviamente viola o princípio da igualdade. É claro que o Congresso vai continuar a discutir, o Executivo também, mas o Supremo está se mantendo nesta apreciação naquilo que a lei de 2006 já indica, que você não pode tratar usuário e traficante do mesmo jeito."
Segundo Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra, "a decisão do STF é uma pequena brecha para desinterdição no debate sobre regulamentação da cadeia produtiva". A socióloga, no entanto, chama a atenção para o avanço no Congresso Nacional da PEC que busca intensificar a criminalização dos usuários.
"O resultado acontece no mesmo período no qual enfrentamos um legislativo ultraconservador que deve reagir a essa decisão através do endurecimento das leis de drogas, como é o caso da PEC 45. Por outro lado, uma interpretação por parte da Suprema Corte sobre esse assunto pode mobilizar setores que estavam em cima do muro sobre a pauta", analisa.
"Sabemos que esse primeiro passo terá reação no Congresso Nacional, aumentando o risco da aprovação da PEC 45. Sigamos atentas e mobilizadas para garantir essa vitória também nas ruas."
O advogado Max Telesca, por sua vez, afirma que a decisão do STF coloca o Congresso Nacional "em uma posição difícil".
"Há, ainda, a questão colocada no Congresso Nacional de uma PEC que criminaliza a posse de qualquer tipo de droga, mas com o julgamento do STF, o Congresso fica numa posição difícil, pois quem determina o que é compatível com a Constituição Federal é o STF."