A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que embasou a operação desta quinta-feira (8) contra aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se arvorou, entre outras coisas, na gravação de uma reunião ocorrida em 5 de julho de 2022 entre o hoje inelegível, seus ministros e generais mais próximos.
Os áudios foram encontrados pela PF na casa do tenente-coronel Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que recentemente negociou uma delação. Moraes colocou a transcrição do vídeo quase que na íntegra na presente decisão, que mira uma verdadeira organização criminosa bolsonarista que tentou golpear a democracia em 8 de janeiro de 2023.
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De acordo com o magistrado, a reunião “nitidamente revela o arranjo de dinâmica golpista no âmbito da alta cúpula do governo, manifestando-se todos os investigados que dela tomaram parte”. Entre esses investigados estão o general Augusto Heleno, o pequeno ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ex-ministro da Defesa; o general Walter Braga Netto, ex-ministro Chefe da Casa Civil; e Mário Fernandes, ex-secretário-geral substituto da Presidência da República.
“Todos ora investigados, prestando-se o ato a reforçar aos presentes a ilícita desinformação contra a Justiça Eleitoral, apontando o argumento de que as Forças Armadas e os órgãos de inteligência do Governo Federal detinham ciência das fraudes e ratificavam a narrativa mentirosa apresentada pelo então Presidente da República Jair Messias Bolsonaro”, escreveu Moraes sobre os presentes à reunião.
De acordo com as investigações da Polícia Federal, a conversa foi convocada pelo próprio inelegível, às vésperas do início da campanha eleitoral, para cobrar seus aliados em relação ao golpismo. Bolsonaro exigiu que cada ministro e cada general propagasse suas teorias conspiratórias sobre as eleições e debateu pormenores de uma possível “virada de mesa”, termo usado pelo general Heleno.
“Utilizaram a estrutura do Estado brasileiro para fins ilícitos e desgarrados do interesse público. Essa narrativa serviu, como um dos elementos essenciais, para manter mobilizadas as manifestações em frente às instalações militares após a derrota eleitoral e, com isso, dar uma falsa percepção de apoio popular, pressionando integrantes das Forças Armadas a aderirem ao golpe”, diz a PF.
Sobre os ministros do STF, Bolsonaro usou a reunião para acusá-los, sem provas, de receber dezenas de milhões de dólares para favorecer Lula (PT) nas eleições.
“Pessoal, perder uma eleição não tem problema nenhum. Nós não podemos é perder a Democracia numa eleição fraudada! Olha o Fachin. Os caras não têm limite. Eu não vou falar que o Fachin tá levando 30 milhões de dólares. Não vou falar isso aí. O ... que o Barroso tá levando 30 milhões de dólares. Não vou falar isso aí. Que o Alexandre de Moraes tá levando 50 milhões de dólares. Não vou falar isso aí. Não vou levar pra esse lado. Não tenho prova, pô! Mas algo esquisito está acontecendo”, disse Bolsonaro.
A gravação da reunião
O primeiro trecho exposto pelo terrível “Xandão” mostra Bolsonaro introduzindo a reunião. Ele diz que se reuniu com o “pessoal do WhatsApp” e “mídias do Brasil” para tratar das teorias conspiratórias acerca do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Tem acordo ou não tem com o TSE? Se tem acordo, que acordo é esse que tá passando por cima da Constituição? Eu vou entrar em campo usando o meu exército, meus 23 ministros. E eu tenho falado com os meus 23 ministros. Nós não podemos esperar 23, 24, pra olhar pra trás e falar: o que nós não fizemos para o Brasil chegar à situação de hoje em dia? Nós temos que nos expor. Cada um de nós. Não podemos esperar que outros façam por nós. Não podemos nos omitir. Nos calar. Nos esconder. Nos acomodar. Eu não posso fazer nada sem vocês. E vocês também patinam sem o Executivo. Os poderes são independentes, mas nós dois somos irmãos”, disse Bolsonaro.
A paranoia eleitoral de Bolsonaro foi resumida numa fala a seguir. “A Câmara deve votar hoje o ... a PEC da Bondade, como é chamada, né? E não tem como, né, depois dessa PEC da Bondade, a gente ... a gente não tá pensando nisso, manter 70% dos votos, ok? Mas a gente vai ter 49% dos votos, vou explicar por que, né?”, disse o inelegível. Ele se referia à aprovação da gastança pré-eleitoral, em que foram liberadas dezenas de bilhões de reais para adiantar pagamentos de programas sociais com vistas a não perder eleitores. Segundo o ex-presidente, por conta dessa manobra que já estava na mira do TSE – e por isso as teorias conspiratórias – não haveria chances de perder as eleições, a não ser que o golpeado fosse ele próprio.
Bolsonaro então dá a diretriz para que Lula também seja atacado com fake news, como "envolvimento com o narcotráfico", cita o caso "celso Daniel". "E a gente vê que o Data Folha continua ... é ... mantendo a posição de 45% e, por vezes, falando que o Lula ganha no primeiro turno. Eu acho que ele ganha, sim. As pesquisas estão exatamente certas. De acordo com os números que estão dentro dos computadores do TSE. Né? E ... Eu tô ... Eu tenho que ter bastante calma, tranquilidade, e vou entrar em detalhes com vocês daqui a pouco", diz o trecho transcrito pela PF.
“Daqui pra frente quero que todo ministro fale o que eu vou falar aqui, e vou mostrar. Se o ministro não quiser falar, ele vai vir falar para mim porque que ele não quer falar. Se apresentar onde eu estou errado, eu topo. Agora, se não tiver argumento pra me... demover do que eu vou mostrar, não vou querer papo com esse ministro. Tá no lugar errado”, esbravejou Bolsonaro, logo após pedir mais esforços para comprovar as supostas ligações entre o PT e o PCC, facção criminosa oriunda de São Paulo.
A cobrança foi rapidamente acolhida por Anderson Torres que, sem querer, acabou dando pistas sobre o escândalo de espionagem da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
“Estamos aí, Presidente, desentranhando a velha relação do PT com o PCC. A velha relação do PT com o PCC. Isso tá vindo aí através de depoimentos que estão há muito guardados aí... isso aí foi feito ó. Tá certo? Isso tudo tá vindo à tona. Isso não é mentira. Isso não é mentira. Então, muita coisa está vindo à tona aí. Muita coisa que a população é ... sabe, mas tudo precisa ser rememorado. Tá certo? Então, essa questão das urnas, essa questão dos inquéritos, nós montamos um grupo lá ? é ... é ... é ... O Diretor Geral da Polícia Federal montou um grupo de policiais federais. E agora uma equipe completa. Não só com peritos. Mas com delegados, com peritos, com agentes pra poder acompanhar, realmente, o passo a passo das eleições", disse o ex-ministro da Justiça que chegou a ficar preso por omissão em relação ao 8 de janeiro, ocorrido quando ele deveria estar exercendo o cargo de secretário de Segurança Pública do Distrito Federal mas havia se mandado de férias aos EUA.
Torres ainda aproveitou para fazer uma previsão em caso de vitória petista naquelas eleições: “ E o exemplo da Bolívia é o grande exemplo pra todos nós. Senhores, todos vão se foder! Eu quero deixar bem claro isso. Porque se ... eu não tô dizendo que ... eu quero que cada um pense no que pode fazer previamente porque todos vão se foder”.
Em seguida, Bolsonaro dá a chave para o desencadeamento do plano golpista, que culminou nos atos de apoiadores em 8 de janeiro e, por pouco, não teve sucesso. Mirando o então ministro da Defesa, ex-comandante do Exército, o ex-presidente fala de seu desejo, caso fosse consumada a derrota nas urnas.
"Nós vamos esperar chegar 23, 24, pra se foder? Depois perguntar: porquê que não tomei providência lá trás? E não é providência de força não, caralho! Não é dar tiro. Ô Paulo Sérgio, vou botar a tropa na rua, tocar fogo aí, metralhar. Não é isso, porra!", disse Bolsonaro.
Paulo Sérgio Nogueira então respondeu o seguinte: “O que eu sinto nesse momento é apenas na linha de contato com o inimigo. Ou seja... na guerra a gente é linha de contato, linha de partida. Eu vou romper aqui e iniciar minha operação. Eu vejo as Forças Armadas e o Ministério da Defesa nessa linha de contato. Nós temos que intensificar e ajudar nesse sentido pra que a gente não fique sozinhos no processo”.
Em outras palavras, o então Ministro da Defesa falou explicitamente que orientaria as Forças Armadas na direção de um golpe que mantivesse o simplório capitão reformado na Presidência da República. Mas para o general Augusto Heleno, que estava à cabeça do esquema de espionagem bolsonarista tocado pelo GSI e pela Abin, era preciso agir rápido.
“Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas. Isso pra mim é muito claro”, analisou Heleno.
Seis núcleos
Segundo a Polícia Federal, a Organização Criminosa montada por Jair Bolsonaro tinha seis "núcleos" para "operacionalizar medidas para(a ) desacreditar o processo eleitoral, (b) planejamento e execução do golpe de Estado e (c) abolição do Estado Democrático de Direito; com a finalidade de manutenção e permanência de seu grupo no poder".
São eles:
1) Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral
Forma de atuação: produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto a lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quarteis e instalações, das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o Golpe de Estado, conforme exposto no tópico "Das Medidas para Desacreditar o Processo Eleitoral" constante na presente representação.
Integrantes: MAURO CESAR BARBOSA CID, ANDERSON TORRES, ANGELO MARTINS DENICOLI, FERNANDO CERIMEDO, EDER LINDSAY MAGALHÃES BALBINO, HÉLIO FERREIRA LIMA, GUILHERME MARQUES ALMEIDA, SERGIO RICARDO CAVALIERE DE MEDEIROS e TÉRCIO ARNAUD TOMAZ.
2) Núcleo Responsável por Incitar Militares à Aderirem ao Golpe de Estado
Forma de atuação: eleição de alvos para amplificação de ataques pessoais contra militares em posição de comando que resistiam às investigadas golpistas. Os ataques eram realizados a partir da difusão em múltiplos canais e através de influenciadores em posição de autoridade perante a "audiência" militar.
Integrantes: WALTER SOUZA BRAGA NETTO, PAULO RENATO DE OLIVEIRA FIGUEIREDO FILHO, AILTON GONÇALVES MORAES BARROS, BERNARDO ROMÃO CORREA NETO e MAURO CESAR BARBOSA CID.
3) Núcleo Jurídico
Forma de atuação: assessoramento e elaboração de minutas de decretos com fundamentação jurídica e doutrinária que atendessem aos interesses golpistas do grupo investigado.
Integrantes: FILIPE GARCIA MARTINS PEREIRA, ANDERSON GUSTAVO TORRES, AMAURI FERES SAAD, JOSE EDUARDO DE OLIVEIRA E SILVA e MAURO CESAR BARBOSA CID.
4) Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas.
Forma de atuação: a partir da coordenação e interlocução com o então Ajudante de Ordens do Presidente JAIR BOLSONARO, MAURO CESAR CID, atuavam em reuniões de planejamento e execução de medidas no sentido de manter as manifestações em frente aos quartéis militares, incluindo a mobilização, logística e financiamento de militares das forças especiais em Brasília.
Integrantes: SERGIO RICARDO CAVALIERE DE MEDEIROS, BERNARDO ROMÃO CORREA NETO, HÉLIO FERREIRA LIMA, RAFAEL MARTINS DE OLIVEIRA, ALEX DE ARAÚJO RODRIGUES e CLEVERSON NEY MAGALHÃES.
5) Núcleo de Inteligência Paralela
Forma de atuação: coleta de dados e informações que pudessem auxiliar a tomada de decisões do então Presidente da República JAIR BOLSONARO na consumação do Golpe de Estado. Monitoramento do itinerário, deslocamento e localização do Ministro do Supremo Tribunal Federal ALEXANDRE DE MORAES e de possíveis outras autoridades da República com objetivo de captura e detenção quando da assinatura do decreto de Golpe de Estado.
Integrantes: AUGUSTO HELENO RIBEIRO PEREIRA, MARCELO COSTA CAMARA e MAURO CESAR BARBOSA CID.
6) Núcleo de Oficiais de Alta Patente com Influência e Apoio a Outros Núcleos
Forma de atuação: utilizando-se da alta patente militar que detinham, agiram para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do Golpe de Estado.
Integrantes: WALTER SOUZA BRAGA NETTO, ALMIR GARNIER SANTOS, MARIO FERNANDES, ESTEVAM THEOPHILO GASPAR DE OLIVEIRA, LAÉRCIO VERGÍLIO e PAULO SÉRGIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA”.
Golpe de Estado
Segundo a investigação da Polícia Federal, o próprio Alexandre de Moraes foi monitorado - inclusive em deslocamentos de helicóptero e avião que fez entre 14 e 31 de dezembro de 2022 - e seria preso, caso fosse consumado o golpe de Estado.
Inicialmente, o plano previa ainda as prisões de Gilmar Mendes e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD). Mas, posteriormente, Bolsonaro teria pedido alterações na minuta - a mesma que foi encontrada na busca e apreensão na casa de Torres - deixando apenas a prisão de Moraes e a realização de novas eleições, sem data definida.
Leia a íntegra da decisão de Moraes