ELEIÇÕES 2024

A caravana que levou o menino Guilherme a encontrar Boulos na periferia de São Paulo

Estratégia para virar voto 24 horas por dia na reta final da campanha levou o filho de Marcos e Ivete Boulos a reencontrar o menino que, olhando nos olhos da miséria, decidiu dedicar a vida na luta contra a injustiça social

Créditos: Arquivo / Leandro Paiva
Escrito en POLÍTICA el

Em 1998, quando dirigia o grêmio estudantil da Escola Estadual Fernão Dias Paes – colégio público onde pediu para estudar –, Guilherme Castro Boulos comunicou aos pais Marcos e Ivete Boulos, médicos infectologistas, a decisão que nortearia sua vida.

"Quando eu ia conversar, ele falava assim: 'quero que você entenda que quero dedicar minha vida contra a injustiça social'. Eu falei: 'pô, um menino de 16 anos falar essas coisas'", lembra o professor do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) sobre o filho. "Não sei se a gente pode definir o momento em que isso ocorreu", emenda Marcos Boulos.

Antes de voltar para casa e ser recebido pela esposa, Natalia Szermeta, e as filhas, Sofia e Laura, na noite desta quinta-feira (24), após passar uma semana "virando voto" nos quatro cantos de São Paulo, Boulos fez uma publicação em suas redes sociais. 

No vídeo da campanha, o deputado e candidato de Lula à prefeitura paulistana conta o momento, bem antes dos 16 anos, em que decidiu olhar nos olhos das pessoas mais pobres e se indignar diante de uma realidade pouco vista por aqueles que viviam em Pinheiros, bairro de classe média alta da capital paulista onde os pais moram.

"Será que existe algo que aconteceu na sua infância que fez com que você se tornasse quem é hoje? Para Guilherme Boulos aconteceu algo quando ele tinha 6 anos", diz o narrador. 

"Guilherme se assustou com um homem que vinha em direção à sua família pedindo comida na frente de uma padaria. Dona Ivete, mãe de Guilherme, explicou que, ao invés de sentir medo, ele poderia se colocar no lugar daquela pessoa e fazer algo. Comprou, então, comida para o homem, olhando nos seus olhos. Ali, ele não apenas perdeu o medo, mas começou a entender a cidade em que vivia", diz o texto, ressaltando que "Guilherme aprendeu desde cedo a transformar indignação em ação".

Em 2018, sete anos antes de decidir sair às ruas na última semana da campanha à Prefeitura de São Paulo, Boulos, como ficou conhecido, levou a indignação que o nutriu a fazer parte das fileiras do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) à política partidária, filiando-se e saindo candidato ao Planalto pelo PSOL.

Em debate à época, lembrou, mais uma vez, o que levou o menino de 6 anos a lutar contra a injustiça social. 

"Esse ódio que eles propagam", disse ao se referir a Jair Bolsonaro (PL), "nasce da indiferença".

"Eu estou há 16 anos lutando nas periferias desse país ao lado do povo que não tem casa, ao lado do povo que sofre, de pessoas que sempre foram acostumadas a ir pelo elevador de serviço, a entrar pela porta dos fundos, a abaixar a cabeça e dizer: 'sim, senhor'. A gente foi perdendo a capacidade de se indignar, de se sensibilizar. A gente perdeu a capacidade de sentir a dor do outro. Nós precisamos trazer para a política essa solidariedade. É com o fim da indiferença que a gente vai vencer o ódio", disse no dia 4 de outubro de 2018.

Seis anos depois, eleito deputado federal e em nova disputa contra o ódio, agora travestido na face de Ricardo Nunes (MDB), Boulos deixou de lado as vestes de moderado do primeiro turno e nutriu-se dessa indignação em uma inédita e histórica campanha em que olhou nos olhos dos paulistanos.

"Foi uma semana muito intensa, desafiadora, virando voto nos quatro cantos da cidade de São Paulo", avaliou, ainda dentro da van a caminho de casa, em Campo Limpo, na periferia, Zona Sul de São Paulo, onde decidiu viver.

"Teve momentos dessa caravana, nesse contato com o povo, de muita emoção, de muita indignação. Foi algo muito forte e ao mesmo tempo muito esperançoso", esperançoso", adjetivou Boulos, em referência ao verbo ressignificado por Paulo Freire, um dos ídolos do professor, que iniciou na carreira dando aulas de um lado marginalizado da História nos barracos das ocupações onde morou.

Empatia

Para Juliano Medeiros, que assinou a ficha de filiação de Boulos no PSOL em 2017, a estratégia do final de campanha serviu para, mais que desconstruir a pecha de extremista – mote da campanha de Nunes –, mostrar o caminho da empatia para que o partido e o campo progressista retomem a conexão com a periferia, diante de uma tentativa de sequestro feita por promessas irreais de "meritocracia" da ultradireita.

"Percebemos que persiste uma vontade de mudança, mas também uma desconfiança em relação à capacidade de Boulos de promover essa mudança. Essa ideia de estar perto das pessoas serve pra mostrar que estamos conectados com o que o povo de São Paulo sente e quer, que não estamos agarrados a teses ou visões ideológicas apenas. É uma tentativa de aumentar a confiança no nosso projeto e encurtar ainda mais a distância com as periferias", disse Medeiros à Fórum.

Medeiros diz que a estratégia inovadora é uma contribuição à esquerda para se fazer política com "os pés nas periferias" e que essa espécie de resgate do passado feito por Boulos na última semana de campanha é um presente para que se faça, num futuro próximo, uma nova discussão sobre o papel do campo progressista, assim como pediu o presidente Lula ao final do primeiro turno das eleições.

"Penso que Boulos é de fato a maior liderança da nova esquerda brasileira. Ele combina uma história que reúne trabalho de base nas periferias, relação com a academia, respeito aos desejos da classe média, combate aos privilégios dos super ricos... Coisas raras numa liderança de esquerda hoje. Sinto que com Boulos temos um presente para conquistar e um futuro pra reconstruir a conexão das esquerdas com nosso povo e oferecer um projeto de transformações estruturais", afirmou o ex-presidente do PSOL e um dos coordenadores da campanha.

Codeputada estadual e coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNU), Simone Nascimento afirma que o grande diferencial da fase final da campanha foi o debate nas ruas, que fez com que a periferia e as pessoas comuns se sentissem vistas pelo candidato.

"Estive ao lado dele em todos os cantos desta cidade, andando  por ruas, becos e vielas. O diferencial desta reta final foi pôr o debate da TV na rua, com microfone aberto pro povo, onde ouvimos as principais demandas e soluções dos problemas que nosso povo enfrenta na cidade. As propostas foram faladas olho no olho com quem desejasse conversar, Boulos virou muitos votos com o debate na rua", contou.

Com o verbo esperançar à frente, Simone acredita na virada histórica e em um governo que veja as periferias e os movimentos sociais sob um novo olhar.

"Tenho certeza de que a cada eleição Boulos fica mais forte com a convivência e escuta ativa da população. Ele foi escolhido por nós para ser nosso representante e nos enche de orgulho. Boulos é uma das maiores lideranças da esquerda no Brasil hoje. Será um exemplo de prefeito que combate o abismo  das desigualdades sociais e territoriais, no país e no mundo", diz a codeputada.

Em entrevista à rádio Metropolitana nesta quinta-feira (24), Boulos contou um episódio da caravana em que optou por contar um pouco de sua história de vida para virar voto de um casal em Grajaú, na Zona Norte, que votariam em Nunes por temer o "extremismo", mesmo não gostando "do que está aí".

"Eu falei: 'poxa, mas ele já teve a chance dele'. E o cara acabou falando: 'vou votar 50 no domingo'", contou.

"É muito isso. Às vezes, as pessoas são levadas por um medo de coisas que foram plantadas. E quando você vai ver, vai pesquisar um pouquinho e vai ouvir a outra pessoa, vê que não é aquilo. Então, o que está em jogo é isto: se a pessoa vai votar movida por um medo ou se vai votar movida por uma esperança, por um desejo de melhorar sua vida", disse um Boulos raiz e indignado, como foi o menino Guilherme quando, aos 6 anos, ao lado da mãe, se colocou no lugar daquele homem que pedia comida e encarou pela primeira vez o que o fez dedicar a vida à luta contra a injustiça social.