CONGRESSO NACIONAL

Senado afronta STF e aprova projeto de lei que institui marco temporal para terras indígenas

Votação expressa reação de parlamentares conservadores a recentes decisões do Supremo, mas tem pouco poder para revertê-las

Protesto de indígenas contra o PL 2903 na Câmara.Indígenas protestaram em maio, na Câmara dos Deputados, contra a aprovação do marco temporalCréditos: Lula Marques/Agência Brasil
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O Senado aprovou, por 43 votos a 21 votos, no início da noite desta quarta-feira (27), o PL 2903/2023, que prevê a adoção do marco temporal como parâmetro para a demarcação de terras indígenas no Brasil. A decisão vem uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) votar contra a validade da tese e, entre os senadores que votaram a favor do texto, é comum o discurso de que o julgamento do STF teria sido uma afronta ao Congresso Nacional, o poder responsável por votar as leis.

No entanto, o discurso dos parlamentares de direita é uma fraude e a manobra para aprovar a tese não deve ter sucesso. O Supremo tem como prerrogativa republicana ser o “guardião da Constituição”, e cabe a ele deliberar se temas polêmicos, como o marco temporal, são ou não constitucionais.

A ofensiva conservadora do Congresso que buscar afrontar o STF bate basicamente em três pontos que estão em discussão na Corte: marco temporal, aborto e descriminalização do porte de maconha. No julgamento de um deles, o aborto legal, a ministra Rosa Weber, presidente do STF, deixa clara a função da Corte.

"Na democracia brasileira, a função de controlar as leis e atos do poder público para garantir que elas estejam em conformidade com a Constituição é exercida por órgão independente daqueles responsáveis por aprovar as leis. Este órgão é tipicamente uma Suprema Corte ou Tribunal Constitucional", explicou.

Em outras palavras, se o STF já julgou um determinado tema como sendo inconstitucional, o Congresso tem pouco poder e margem para reverter a decisão. É o caso do marco temporal. Além disso, o PL 2903/2023 precisaria da sanção presidencial para valer, o que dificilmente ocorrerá. O mais provável é que o presidente Lula (PT) vete o texto.

Como foi a votação no Senado

Bolsonaristas e ruralistas se aliaram na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e aprovaram na manhã desta quarta-feira (27) o Projeto de Lei 2.903/2023 que estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas. A votação ficou em 16 votos a 10 em favor do projeto - com uma ausência, do senador Márcio Bittar (União-AC). A CCJ ainda aprovou a tramitação em regime de urgência da matéria no plenário da casa legislativa, o que fez com que o PL fosse votado horas mais tarde por todo os senadores.

A aprovação é uma afronta à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que na quinta-feira (21) rejeitou a tese ilusória criada pelos ruralistas para definir uma data final de demarcação nas terras indígenas.

Após pedido de vista de Eliziane Gama (PSD-MA) na semana passada, o relator Marcos Rogério (PL-AP) rejeitou todas as emendas para colocar o projeto em votação a toque de caixa. No seu parecer, Marcos Rogério confirma a fixação da data da promulgação da Constituição federal, de 5 de outubro de 1988, como parâmetro de marco temporal para verificação da existência da ocupação da terra pela comunidade indígena que solicita reconhecimento.

Com 283 votos favoráveis e 155 contrários, os deputados aprovaram o texto (com o número PL 490/2007, na Câmara) no final de maio, após 15 anos de tramitação. Segundo o projeto, para que uma área seja considerada “terra indígena tradicionalmente ocupada”, será preciso comprovar que, na data de promulgação da Constituição Federal, ela vinha sendo habitada pela comunidade indígena em caráter permanente e utilizada para atividades produtivas.

Também será preciso demonstrar que essas terras eram necessárias para a reprodução física e cultural dos indígenas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar.

No caso de o local pretendido para demarcação não estar habitado por comunidade indígena em 5 de outubro de 1988, fica descaracterizada a ocupação permanente exigida em lei, exceto se houvesse “renitente esbulho” naquela data — isto é, conflito pela posse da terra. Assim, terras não ocupadas por indígenas e que não eram objeto de disputa na data do marco temporal não poderão ser demarcadas.

O PL ainda altera a Lei 4.132, de 1962, para incluir, entre situações que permitem desapropriação de terras particulares por interesse social, a destinação de áreas às comunidades indígenas que não se encontravam em área de ocupação tradicional na data do marco temporal, desde que necessárias a sua reprodução física e cultural.

O projeto também proíbe a ampliação das terras indígenas já demarcadas e declara nulas as demarcações que não atendam aos seus preceitos.

STF

A aprovação do Projeto sobre o Marco Temporal é parte da guerra aberta pelos bolsonaristas e ruralistas contra o STF. Nesta terça-feira (26), o senador Rogério Marinho (PL-RN) anunciou o bloqueio de votações na Câmara e no Senado em protesto contra decisões do STF.

Além do aborto, os parlamentares citaram drogas, marco temporal e contribuição sindical como motivadores para a obstrução.

"Vamos nos posicionar obstruindo a pauta de votação no âmbito do Senado, como uma demonstração da nossa insatisfação pela forma como a relação entre os poderes vem sendo abalada. Nós afirmamos que há uma interferência por parte do Judiciário em ações que são de alvitre, de competência do Legislativo e esses quatro temas importantes exemplificam isso", disse Marinho em entrevista coletiva.

Marco Temporal

Com o voto do ministro Luiz Fux, o Supremo formou maioria para rejeitar a tese do Marco Temporal na última semana. O magistrado se juntou ao relator Edson Fachin e aos ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Cristiano Zanin e Dias Toffoli, somando 6 votos pela rejeição da tese.

Favoráveis à tese votaram os dois ministros indicados ao Supremo por Jair Bolsonaro (PL): André Mendonça e Kássio Nunes Marques.

Logo após o Voto de Fux, a ministra Cármen Lúcia também votou contra o Marco Temporal e ampliou o placar da maioria para 7 a 2. Os ministros Gilmar Mendes, o decano, e Rosa Weber, a presidente da Corte, deram números finais à goleada jurídica: 9 a 2.

A tese é considerada por críticos da esquerda e pelos próprios indígenas como um dos principais instrumentos do agronegócio para invadir e explorar terras indígenas, e um ataque frontal aos direitos dos povos originários. De acordo com a cartilha “Marco Temporal” da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), 1393 territórios estão sob ameaça.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 226 processos que envolvem disputas de terras estavam parados em instâncias inferiores aguardando a decisão do STF, que terá um impacto direto em todos eles. Se fosse aprovada a tese, terras que estão em processo de demarcação ou que ainda não foram identificadas pelo poder público poderiam ser consideradas como propriedade particular ou do Estado, não podendo mais ser reivindicadas pelos povos originários. Por esse motivo, temos observado ao longo dos anos a mobilização de movimentos sociais e populares em todo o país contra a pauta, principalmente dos próprios movimentos indígenas.