Com uma rapidez surpreendente, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara debateu nesta quarta-feira (14) a abertura de processos de cassação contra as deputadas do Psol Célia Xakriabá (MG), Fernanda Melchionna (RS), Sâmia Bomfim (SP) e Talíria Petrone (RJ); além das petistas Juliana Cardoso (SP) e Erika Kokay (DF). Os casos foram incluídos na pauta pelo presidente do colegiado, Leur Lomanto (UB-BA).
Durante a reunião foi feito o sorteio dos relatores das representações contra as deputadas. Todas as representações foram apresentadas pelo PL. O partido do ex-presidente Jair Bolsonaro diz que as deputadas quebraram o decoro parlamentar durante a votação do projeto do marco temporal de terras indígenas (PL 490/07) no Plenário da Câmara no fim de maio.
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Na ocasião, as parlamentares representadas no Conselho de Ética protestaram contra o texto que restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O projeto acabou aprovado e seguiu para o Senado, onde ainda será analisado.
'O absurdo perde a modéstia'
Uma das representadas, a petista do Distrito Federal Erika Kokay, relembrou uma frase atribuída ao dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) para classificar os processos contra as parlamentares, todas mulheres e de partidos de esquerda.
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"Eu fico impedida de não lembrar de Nelson Rodrigues quando diz que 'o absurdo perde a modéstia'. É o que estamos vivenciando aqui. Nós já tivemos recentemente neste país uma história onde nós éramos colocados no banco dos réus por defendermos a ciência. É a reedição da tragédia que foi enfrentada por Giordano Bruno e por Galileu [Galilei]", comparou.
Erika também falou sobre os impactos negativos nos direitos dos povos indígenas com o avanço do PL do Marco Temporal, ponto central as representações contra as deputadas de esquerda.
O Brasil inteiro viu o que está acontecendo com a violência contra os povos indígenas. E lembro bem da fala de uma liderança indígena que dizia: 'começaram a nos atacar pelas canetas. Agora nos atacam com os fuzis', disse.
A parlamentar citou ainda a volta do 'velho bacamarte', em referência a um modelo de arma de fogo usada durante os séculos XVIII e XIX no assassinato de povos originários em terras brasileiras.
"Há novas colonialidades que carregam velhos métodos dentro do seu bojo. Aqui nós nos insurgimos com muito orgulho contra um projeto que faz com que nós tenhamos a legalização do esbulho dos territórios indígenas com o marco temporal. Que possibilita, ferindo a própria Constituição, a ausência do usufruto exclusivo dos próprios territórios. E nós nos insurgimos contra isso e continuaremos nos insurgindo", declarou Érika.
A deputada do DF destacou ainda que os processos que tramitam contra mulheres no Conselho de Ética é expressão de violência política de gênero. Ela relembrou vários ataques proferidos por bolsonaristas contra essas mulheres.
"De repente vem uma representação com seis parlamentares, todas mulheres, e isso não é à toa. Todas mulheres. Porque é uma violência política de gênero aqui. Nós já escutamos que éramos 'deputéricas', fazendo um trocadilho com histéricas. Nós já escutamos 'vocês deviam morrer, dormir e não acordar mais'. Nós já escutamos muita coisa. É violência política de gênero sim. E violência contras as representações dos povos indígenas que hoje estão aqui neste parlamento contra a vontade dos que acham que o bacamarte tinha que continuar existindo e que podem fincar as suas estacas das suas cercas, suas cercas cruéis, em território do povo indígena", discursou.
A parlamentar petista avaliou que os processos no Conselho de Ética não fazem sentido, são perseguição política e tentativa de silenciar as deputadas representadas. Ela alertou ainda que o procedimento é uma tentativa de transformar o colegiado em um instrumento para calar as vozes femininas na política de um modo geral.
"Esse processo é perseguição política de gênero, é perseguição política de quem pensa de forma diferente. Não seremos processadas em função de dizermos o que pensamos e como encaramos as matérias que estão postas nesta casa. Não nos calarão!", encerrou.
Assista
Entenda o caso
No dia 31 de maio, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), encaminhou ao Conselho de Ética uma ação do PL, protocolada no dia anterior, contra as seis parlamentares. O documento, assinado pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, as acusa de quebra de decoro por terem chamado de "assassinos" os deputados que votaram a favor do marco temporal. O pedido de abertura de processo foi feito de forma coletiva.
No dia 2 de junho, um ofício - também assinado por Valdemar Costa Neto - solicitou a retirada da tramitação da representação, o que foi feito na terça-feira (13) pela Mesa Diretora. Em um prazo de quatro horas, as representações individuais foram recebidas pela Mesa, uma para cada uma das seis parlamentares.
Por outro lado, também no dia 2 de julho fez quatro meses que ações contra quatro deputados do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, acusados de estimular os atos golpistas de 8 de janeiro, estão paralisadas na Mesa Diretora. Essas representações foram feitas pelo Psol e até hoje não foram encaminhadas ao Conselho de Ética.