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“Eu tenho quase certeza de que não fui estuprada porque eles tinham nojo de mim”, contou à Comissão Nacional da Verdade a militante Isabel Fávero, presa em Nova Aurora, Paraná, nos anos 1970.
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Grávida de dois meses, ela foi levada para o Batalhão de Fronteira em Foz de Iguaçu e abortou depois de cinco dias de tortura. “Eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico e já tinha mau cheiro”, depôs.
A tortura a que mulheres foram submetidas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985) teve um duplo caráter, sustentam os historiadores Lívia Pizzi Silveira e Leonardo Luiz Pereira de Paula, da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG).
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Os dois se debruçaram sobre os relatos feitos por prisioneiras e descobriram um padrão: as mulheres eram torturadas não apenas em busca de informação, mas por terem se desviado do que seus algozes, todos homens, tinham como “norma” para o papel feminino na sociedade brasileira.
Assim, as militantes eram recebidas nas câmaras de tortura como “putas” ou “vadias”, submetidas a humilhações de caráter sexual e ameaçadas em relação ao bem que mais protegiam, os filhos.
“Vocês são moças, jovens, que provavelmente pretendem casar, constituir uma família, e fica muito mal moças como vocês estarem frequentando sindicato”, disse um delegado do Departamento de Ordem Política Social (Dops) a Ana Maria Gomes, quando ela foi presa na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, São Paulo, em 1968.
Karen Keilt mudou-se para os Estados Unidos e escreveu o livro “The Parrot’s Perch”, uma tradução para o nome do pau de arara, o instrumento mais utilizado pelos torturadores brasileiros. A vítima é suspensa em um pau com os pés e as mãos amarradas, o que dificulta a respiração. Em seguida, é espancada.
A ditadura militar brasileira aplicou “técnicas científicas” de tortura que haviam sido aplicadas nas guerras de contrainsurgência da Argélia e do Vietnã, muitas delas ensinadas por agentes a serviço dos Estados Unidos.
“Começaram a me bater. Eles me colocaram no pau de arara. Eles começaram dando choque no peito. No mamilo”, contou Karen em seu depoimento.
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Alta e de olhos azuis, Karen era de classe média alta, casada com Jack, um empresário bem-sucedido com o qual se mudou para o Arizona depois de deixar a prisão no Brasil.
“Eu comecei a sangrar. Da boca. Sangrava de tudo quanto era... da vagina, sangrava. Veio um dos guardas e me levou para o fundo das celas e me violou. Ele falou que eu era rica, mas que eu tinha a buceta igual a de qualquer outra mulher.”
Karen foi presa em 19 de maio de 1976, com o marido, e levada para o Departamento Estadual de Investigações Criminais, o Deic paulista. A acusação informal é de que o casal estava envolvido com o tráfico de drogas.
Muitos anos depois, quando Dilma Rousseff foi eleita presidenta do Brasil, Karen compartilhou com ela e com o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, um relato ficcional acompanhado de uma carta – dizendo que sua história era verdadeira.
Os torturadores não a viam como militante política, mas sim como “puta merecedora de tal violação”, disse Karen quando depôs à Comissão Nacional da Verdade.
O casal foi libertado depois de 45 dias no Deic, quando o pai dela, funcionário da Ford, pagou 400 mil dólares em propina aos policiais.
Mais tarde, de maneira dramática, já morando nos Estados Unidos, Karen conseguiu confirmar que o pai, Frederic, era agente da inteligência dos Estados Unidos. Ele serviu a uma divisão de inteligência militar entre 1955 e 1975, inclusive no Brasil.
Os homens do Deic que prenderam e torturaram Karen e o marido se serviram de informações obtidas na defesa da ditadura para enriquecer. Extorquiram um espião.
Nesse contexto, o estupro da filha de mãe norte-americana foi sadismo, demonstração de poder e experiência sexual com uma mulher supostamente “exótica”, fora dos padrões brasileiros.
Arbítrio e crueldade em seus estados mais puros.
De acordo com os autores da pesquisa que cita Karen, além de combater as “mulheres comunistas”, os agentes da ditadura, frutos de uma sociedade machista e patriarcal, consideravam que as mulheres deveriam ser “submissas, frágeis e delicadas”.
Por isso, eram especialmente cruéis ao torturá-las.
Segundo o levantamento, havia até uma tortura específica para mulheres. Um dos braços era preso de tal forma que, se elas tentassem reagir à ameaça de estupro ou à introdução de objetos na vagina ou no ânus, a dor se multiplicava.
O estudo que cita Karen e várias outras mulheres foi publicado na primeira edição da Revista Histórias Públicas, da UEMG, que está disponível gratuitamente na internet.
Uma das organizadoras é a professora Janaína Teles, que incentiva outros pesquisadores a colaborarem com a revista.
A primeira edição trata de “Ditadura e autoritarismo: necropolítica, negacionismo, arquivos e usos do passado”. Para Janaína, o governo Bolsonaro “surfou na falta de uma política pública sistemática de memória sobre as ditaduras do século 20 e o autoritarismo no Brasil”.
Ela é crítica, inclusive, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, elaborado durante o governo Dilma: “O relatório da CNV menciona cerca de 10 mil mortos e desaparecidos da ditadura militar, mas pouco avançou na investigação das circunstâncias desses crimes”.
Para Janaína, o Brasil sofre com os efeitos deletérios da ditadura. A Comissão Nacional da Verdade, segundo ela, “não realizou um levantamento sistemático acerca da tortura cometida no período, o que é muito grave, tendo em vista que esse é o principal legado da ditadura, ao lado das polícias militares”.
Como se sabe, submetidas ao Exército, as PMs ficaram encarregadas de combater o “inimigo interno” nas periferias das metrópoles brasileiras.
“Inimigo interno”, de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional, adotada pelos militares, era qualquer um que discordasse dos rumos da ditadura.
O caso de Janaína Teles, a professora que organizou a revista, obviamente não é mencionado no estudo. Ela e o irmão Edson foram sequestrados pela polícia depois da prisão dos pais, em dezembro de 1972.
Enquanto César e Maria Amélia eram torturados, Janaína e o irmão foram mantidos em local desconhecido. Foram levados ao cárcere dos pais, num caso brutal de tortura psicológica.
Numa entrevista a este autor, Amelinha Teles contou que foi torturada com choques em todo o corpo, inclusive nos seios, na vagina e no ânus. As sessões eram comandadas pelo ídolo do ex-presidente Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Brilhante Ustra, que dirigiu o maior centro de torturas do Brasil na Rua Tutóia, em São Paulo.
Amelinha disse a este repórter que nada se comparou à dor de mal ser reconhecida pelos próprios filhos, suja de sangue e com o rosto cheio de hematomas. Ela foi torturada na condição de militante, mulher e mãe.
Amelinha e a família foram à Justiça e conseguiram formalizar a condenação de Brilhante Ustra como torturador, um caso único no Brasil.
Irmã mais nova de Amelinha, Criméia é citada no estudo dos pesquisadores da UEMG. Ela foi presa grávida de seis meses. Dupla tortura, da militante na resistência à ditadura e da mãe “de um futuro comunista”, na visão de seus algozes.
À Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, da Assembleia Legislativa de São Paulo, Criméia disse que um médico acompanhava as sessões de tortura: “Ela aguenta a tortura nos pés e nas mãos, só não pode espancar a região da barriga”.
Criméia deu à luz presa e só teve o primeiro contato com o filho desnutrido 53 dias depois do nascimento.
A jornalista Rose Nogueira passou pelo mesmo suplício. Ela foi presa pouco depois de dar à luz. Mantida em cárcere por um dos mais ferozes torturadores da ditadura, o delegado da Polícia Civil de São Paulo, Sérgio Paranhos Fleury, Rose recebeu injeções para deixar de produzir leite materno.
Foi vítima de abuso de um de seus torturadores, mas ao sair da cadeia recuperou a relação com o filho.
Flora Strozenberg não teve a mesma sorte. Ela foi presa por agentes da ditadura em agosto de 1974. À época, para confundir a inteligência das organizações que combatiam a ditadura, militares se escondiam adotando o cargo de civis – e vice-versa.
Aparecido Laertes Calandra, delegado da Polícia Civil de São Paulo, era conhecido como capitão Ubirajara.
“Um dia o Calandra me chama para interrogatório e diz: ‘Senta aí’. Era a cadeira do ginecologista”, narrou Flora à Comissão Nacional da Verdade.
Grávida, Flora foi submetida a seguidas sessões de tortura, até abortar. “Tinha perdido mais de 20 quilos nesse tempo. A hemorragia era em todos os buracos possíveis. Foi muito sangue, não sei como não tive um choque, entendeu?”, ela contou à CNV.
Flora disse que, no caso dela, havia um sentido em usar a cadeira de ginecologista: “É uma cadeira que eles pegam choque elétrico e botam [na vagina] com as seguintes palavras: ‘Isto é para você nunca mais botar comunista no mundo’”.