Um cabo do Exército perdeu o cargo menos de três meses depois de fazer críticas ao senador Marcos do Val em uma rede social. Tentamos entrevistá-lo, mas Sandro de Quintal disse que não daria declarações, alegando temer represálias.
A reportagem da Fórum, no entanto, teve acesso à íntegra de uma ação que ele moveu no Ministério Público Federal (MPF) tentando reaver o cargo.
As postagens de Quintal ainda estão publicadas numa página do Facebook de nome Stolen Valor Brasil. Nos comentários, ele não se apresenta como militar.
A página, que tem 33 mil seguidores, se dedica à “caça de embusteiros, falsários e estelionatários que se passam por policiais”.
"Stolen Valor" é o nome de uma lei assinada pelo ex-presidente dos Estados Unidos, George Bush, o filho, que penaliza quem usar condecorações falsas, por exemplo.
Esta página foi criada por um reservista do Exército dos EUA, Lincoln Batista, com o apoio de um grupo que ele estima ter “menos de dez pessoas”.
Em 2016, passou a denunciar Marcos do Val – só eleito senador em 2018 – por dizer ser o que não era: policial.
Àquela altura, Marcos do Val havia se apresentado em programas de TV no Brasil, em rede nacional, como “instrutor da SWAT” nos EUA.
Porém, quando as denúncias contra ele se avolumaram nas redes, Marcos do Val tratou de publicar, em 2017, um vídeo dizendo que não era policial, mas sim instrutor de técnicas de imobilização que teria desenvolvido a partir de sua experiência com artes marciais, como o aikido.
Como a Fórum demonstrou com exclusividade, a Federação Internacional de Aikido, baseada em Tóquio, no Japão, negou que Marcos do Val seja “mestre” na arte, conforme o senador reivindica no primeiro parágrafo de sua biografia oficial.
Um dos comentários de Sandro de Quintal na página do Stolen Valor foi feito no dia 27 de novembro de 2019.
“Nunca foi policial, mas já deu entrevista dizendo que foi e também disse para um policial militar. Depois fez um vídeo desmentindo as suas próprias falas”, escreveu Quintal.
Não é mentira.
Em ao menos quatro ocasiões, Marcos do Val declarou ser policial, em gravações de vídeo ou mensagens de texto a que a Fórum teve acesso.
Num de seus comentários na página do Stolen Valor, Quintal falou sobre o papel de Marcos do Val como instrutor: “SWAT de Taubaté”, escreveu, seguido por uma gargalhada.
Foi uma referência à falsa grávida de Taubaté, que ficou famosa se apresentando em programas de TV como prestes a parir quadrigêmeos, que na verdade eram uma grande bola de plástico escondida sob o vestido largo.
O cabo Sandro de Quintal serviu durante sete anos no Batalhão de Suprimento e Manutenção de Aviação do Exército, em Taubaté, interior de São Paulo.
Em 25 de novembro de 2019, dois dias depois de fazer a postagem em que criticou o senador, o cabo pediu formalmente a renovação de seu contrato por mais um ano, o último a que teria direito.
Ele estava certo de que seria reconduzido ao cargo. “Não possuo nenhum demérito, pelo contrário, em 2019 fui reconhecido e agraciado com o título de Destaque de Segurança de Voo”, escreveu na ação movida junto ao MPF.
Sandro afirma no documento que tinha uma boa relação com o superior, que terminou de forma abrupta: em 14 de fevereiro de 2020, recebeu a notícia de seu desligamento, menos de três meses depois de uma das postagens críticas.
Na ação, Sandro diz ter recebido a orientação de um subtenente, em novembro de 2019, de que não deveria compartilhar ou curtir “qualquer coisa no Facebook ligada ao Senador Marcos do Val”.
“Segundo esse militar, Marcos do Val teria reclamado com alguma autoridade”, diz ele na ação movida no MPF.
Em março de 2020, trocando mensagens com um capitão do Exército, leu que o motivo de sua demissão teria sido “uma ordem que veio de Brasília”.
Na ação, Quintal diz não ter provas do motivo de seu desligamento, mas que ouviu comentários de mais de uma pessoa de que Marcos do Val teria usado seu poder nos bastidores.
Em 25 de agosto de 2019, o senador pelo Espírito Santo recebeu as Medalhas do Pacificador e do Exército Brasileiro, em cerimônia do Dia do Soldado.
Na evento, posou ao lado do então comandante do Exército, General Edson Leal Pujol, tendo ao fundo o ex-presidente Jair Bolsonaro.
À época, era relator do pacote anticrime do então ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, Sergio Moro.
Foi nessa condição que, alegando ter recebido ameaças por e-mail, o senador pediu à Polícia Legislativa a abertura de uma investigação, conduzida pela Polícia Federal.
Várias pessoas foram chamadas a depor no caso, inclusive Quintal.
Os integrantes da Stolen Valor Brasil que vivem nos Estados Unidos disseram à Fórum que jamais ameaçaram o senador e que o inquérito foi usado por Do Val para intimidar seus críticos.
Lincoln Batista, cidadão americano, mora no Alabama e desafia o senador a processá-lo nos Estados Unidos. Alega que, assim, poderá provar o conteúdo de um dossiê que organizou com o que seriam “exageros” do senador capixaba em seu currículo.
Na ação no MPF, o cabo Quintal escreveu: “Possuo duas declarações de que eu seria reengajado e com isso contraí dívidas. Se o comandante iria me mandar embora, por que não me informou em novembro?”.
Um oficial graduado que serviu na mesma unidade de Taubaté confirmou à Fórum que o cabo era um bom profissional do Exército e que os colegas de farda ficaram surpresos com sua dispensa.
Foi tão de surpresa que Quintal não pôde treinar seu substituto, o que é rotina no Exército.
De acordo com advogados que atuam junto à Justiça Militar, a dispensa de um subordinado é poder discricionário do comandante da unidade, mas dependendo das circunstâncias pode configurar abuso de autoridade.
“O abuso de poder ocorre sempre que a norma for usada com desvio de finalidade”, escreveu Jorge Eduardo Medina, especialista em Direito administrativo militar.
Punir um militar para satisfazer o desejo político de terceiro poderia se enquadrar nisso, argumentam aliados de Sandro de Quintal, que frisam que ele se expressou em rede social sempre na condição de cidadão privado.
O MPF indeferiu o pedido de instauração de Inquérito Civil Público feito por Sandro de Quintal sem entrar no mérito: alegou que, por se tratar de uma questão pessoal, não era de sua alçada interferir.
Um integrante da Stolen Valor nos Estados Unidos, que pediu sigilo de fonte, confirmou que Marcos do Val pode ser vingativo.
O militar, que serviu ao Exército dos EUA e agora é policial, fez críticas públicas aos métodos ensinados pelo brasileiro.
Antes de concorrer ao Senado, Do Val ganhou dinheiro como dono do Centro Avançado de Técnicas de Imobilização, o CATI, promovendo cursos de especialização de policiais e militares no Brasil e nos Estados Unidos.
A mais famosa técnica associada a Do Val é o “pacotinho”, em que o detido é colocado de bruços, tem as mãos algemadas nas costas e as pernas cruzadas presas sob as algemas.
A crítica, gravada em vídeo, foi baseada em um documento do Instituto Nacional de Justiça, ligado ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Em boletim de junho de 1995, com o título de “Asfixia posicional – Morte súbita”, um doutor da Universidade do Texas e um legista de Connecticut dizem que colocar o detido de bruços e com as mãos algemadas nas costas pode causar dificuldades de respiração, asfixia e morte, especialmente em pessoas agitadas ou sob o efeito de álcool e cocaína.
O vídeo teve grande repercussão entre agentes de segurança.
A fonte da Fórum diz que foi pega de surpresa quando viu Marcos do Val visitar pessoalmente a unidade do Texas para pedir ao comandante que o vídeo fosse retirado do ar.
Ele ainda não havia iniciado sua campanha ao Senado.
Depois que Marcos do Val se elegeu, um assessor teria repetido o pedido sobre o vídeo por e-mail, mais uma vez sem sucesso.
Esta mesma fonte revelou à Fórum que leu um pedido de prisão feito contra Marcos do Val em um tribunal de Galveston, no Texas, em 2017, no auge das denúncias contra o brasileiro feitas pelo grupo do Stolen Valor Brasil.
A petição deu entrada em uma sexta-feira, 18 de agosto. Continha o depoimento de três pessoas que diziam ter ouvido da boca do próprio Marcos do Val que ele era policial. O documento reproduzia fotos da página do Facebook onde o brasileiro expunha armas e distintivos em território dos Estados Unidos.
O juiz poderia decretar a prisão de Do Val por se fazer passar por policial ou simplesmente descartar a denúncia, sem qualquer consequência.
Porém, o pedido nunca foi analisado. No dia seguinte, um sábado, o furacão Harvey devastou o Texas, inundou o tribunal de Galveston, destruiu documentos e a rede de computadores.
O autor da ação, com medo de represálias, jamais reapresentou a petição.