CASO GSI

Terrorismo de Estado: Entenda o que é a acusação que pesa contra o GSI

Fórum ouviu jurista, historiador e defensor dos Direitos Humanos para explicar o que é exatamente a prática que um servidor da PF atribui aos militares do Planalto

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Após a reportagem da Fórum na qual um servidor da Polícia Federal (PF) lotado na Presidência da República acusou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de estar por trás dos atos de terror levados a cabo por extremistas bolsonaristas em Brasília, na noite da última segunda-feira (12), o termo “Terrorismo de Estado”, usado pelo denunciante para classificar a suposta conduta do órgão de inteligência, passou a ser procurado nos buscadores da internet.

Para esclarecer o que a expressão representa, a Fórum foi ouvir especialistas no tema, que falaram não só sobre a acusação que pesa contra o GSI, mas também sobre seu histórico no Brasil e em outros países e nas previsões legais que versam sobre o tema no ordenamento jurídico brasileiro.

A jurista Soraia Mendes, ex-coordenadora nacional do Comitê para América Latina e o Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM), que é jurista e doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse à Fórum que está perplexa com a denúncia que envolveu um órgão central do governo federal, e que é composto por militares e profissionais de carreira da área de Segurança, e afirmou ser algo de muita gravidade. Ela falou sobre o que diz a legislação brasileira em relação ao Terrorismo de Estado e admitiu que a lei prevê uma punição branda para o crime.

“Como jurista, entendo que, com a gravidade do que foi revelado pela Fórum, estejamos, mais uma vez, diante de um crime contra as instituições democráticas consistente, de acordo com o Código Penal, quando versa sobre ‘tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais’. E é um crime apenado com reclusão de apenas entre quatro a oito anos, além da sanção correspondente à violência. É pouco, muito pouco, e digo isso com todo o risco de ser etiquetada como ‘punitivista’ por algum incauto. Os direitos e as liberdades civis, políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais que devem ser garantidos sob o mando do Estado Democrático compõem bem jurídico de valor imensurável, de maneira que o ataque a ele exigiria, ao meu ver, a maior de todas as respostas possíveis em nosso ordenamento”, explicou Soraia.

A dimensão dos ataques e a forma como foram engendrados também chamou a atenção da jurista, para quem a ação tem claramente o intuito de demolir os pilares democráticos do regime político brasileiro.

“Tudo o que vimos na segunda-feira à noite em Brasília demonstra que não se trata de uma mera insatisfação com o resultado eleitoral de grupos tresloucados que se agarram a para-choques de caminhão ou fazem sinais a extraterrestres com celulares. Tampouco o que os camisas verde-amarela têm promovido não é mero vandalismo. O que essa horda objetiva é rasgar a Constituição e instaurar um modelo de Estado ditatorial. Desejam, enfim, abolir o Estado de Direito e a democracia. E tudo isso, que já é muito grave, será ainda mais, em sendo comprovado que o GSI está envolvido ou capitaneando essa orquestração terrorista, em sentido político amplo, como informa a reportagem exclusiva da Revista Fórum”, analisou.

Soraia ainda disse esperar que o novo governo eleito, de Lula, que toma posse em 1° de janeiro do próximo ano, coloque fim a esse tipo de arbítrio e que retome as bases do Estado Democrático de Direito, fazendo valer o império da lei.

“Frente a tudo isso, penso que do futuro governo Lula, o que se espera não pode ser nada mais, nada menos do que o cumprimento da lei, dentro do devido processo legal. Ou seja, que ele se oriente e aja no oposto aos sigilos e às perseguições, às mudanças de comando da Polícia Federal e outras façanhas autoritárias que vimos ao longo desses quatro anos de fascismo”, concluiu a jurista.

Já o advogado e historiador Marcelo Cardoso da Silva, professor há mais de 20 anos em cursos preparatórios pré-vestibulares do Estado de São Paulo e formado na Universidade Estadual Paulista (UNESP), explicou à Fórum em quais momentos históricos da América Latina e do Brasil o Terrorismo de Estado foi implantado como mecanismo de intimidação durante regimes autoritários.

“Levando em conta que a própria definição de Terrorismo de Estado é a instauração e manutenção de um regime de violência mantido por um governo em favor do grupo político que detém o poder e se utiliza dele para governar e submeter através do terror aqueles que lhe fazem algum tipo de oposição, podemos dizer que os casos que já ocorreram por toda a América do Sul, num passado recente e até no presente, são quase que incontáveis. Sucintamente, o sistemático desaparecimento de opositores tanto no Chile, quanto Argentina, durante os governos ditatoriais nas décadas de 70 e 80, são exemplos clássicos disso. Ainda é possível lembrar os episódios de 2019 no Chile, durante o governo de Sebastian Piñera, quando dezenas de manifestantes, ou não, tiveram seus olhos perfurados por atiradores da polícia que abriam fogo intencionalmente contra as pessoas na altura da face, para gerar dano oculares. O governo tentou desqualificar as acusações, mas, diante de investigações por órgãos ligados aos Direitos Humanos, ficou claro que foi uma ação sistematizada por agentes do governo para gerar pânico entre as pessoas e evitar novas manifestações. No caso do Brasil, podemos falar das ações do DOI-CODI e do DOPS, durante a Ditadura Militar, que por um bom tempo não tinham nem mesmo a preocupação de esconder a sua função, apenas justificando o que faziam como uma contrapartida a supostas organizações guerrilheiras de esquerda. Outro caso emblemático foi o chamado atentado do Riocentro, em 1981, no qual agentes do governo tentaram forjar uma ação de grupos de esquerda com o objetivo de criar pânico durante o processo, mesmo que inicial, da abertura política”, listou o historiador.

Questionado sobre as acusações contra o GSI e o teor do que foi dito pelo servidor federal que fez a denúncia, Cardoso afirma que, caso isso seja verdade, há um quadro evidente de Terrorismo de Estado.

“O fato de existirem agentes do Estado utilizando as ferramentas que o próprio Estado fornece para agir contra o regime democrático já caracteriza o Terrorismo de Estado. Parece que o modus operandi é o mesmo utilizado durante os anos 60, 70 e 80 na América Latina de uma forma geral, no qual o discurso moralista e anticomunista serve de justificativa para que qualquer ação, por mais violenta que seja, possa ser utilizada para garantir que opositores se sintam desencorajados pelo uso possível de um barbarismo por parte daqueles que deveriam manter a ordem e o zelo legal”, disse o professor.

Sobre o perfil dos militares brasileiros, sempre coléricos contra um comunismo imaginário e embasados num forte discurso conservador e, até certo ponto, patético, o historiador diz que essas acusações a eles imputadas sobre agir como agentes desestabilizadores têm uma origem precisa e estão relacionadas a duas correntes históricas.

“Os militares atuais são muito influenciados por duas correntes principais. A primeira é o Tenentismo, que tem como uma de suas bases o salvacionismo, que por sua vez é influenciado pelo modelo militar que proclamou a República. Num segundo momento, há a influência do pós-2ª Guerra Mundial, que vem à tona com a ESA (Escola Superior de Guerra), que difundiu o anticomunismo e foi responsável pela instrumentalização ocorrida no período do Golpe Militar de 1964”, afirmou ainda Cardoso.

O advogado especialista em Segurança Pública Ariel de Castro Alves, que é membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, também foi ouvido pela Fórum e disse que, se comprovadas as acusações contra o GSI, e por consequência contra Bolsonaro, estará claramente configurada a prática de Terrorismo de Estado.

“Existem suspeitas de que todos esses atos violentos e golpistas são orquestrados por Bolsonaro e seus assessores, familiares e ministros. Nesse sentido, pode se configurar o Terrorismo de Estado, já que eles estariam estimulando e até ajudando no financiamento público, e com possível apoio de empresários Bolsonaristas, a atacar a paz e a incolumidade pública”, opinou Castro Alves, expondo ainda à reportagem todo o teor da Lei Federal 13.260, promulgada em 2013 pela presidenta Dilma Rousseff, que trata sobre o crime de terrorismo, inclusive abarcando os casos que envolvam a presença e a ação de membros do estado.