A arte e Sebastião Salgado – Por Manoel Herzog
Salgado, abrindo mão das cores da alma e das cores reais, mostrou como, dentro da limitação humana, demasiadamente humana, é que se cria a verdadeira arte
Há registros históricos (não sei aonde, mas há) de Anacreandro, pintor da natureza nos primórdios da civilização grega, esculhambando Giotto, mestre da expressão e primeiro a plasmar sentimentos nos rostos pintados. Anacreandro, que viveu muitos séculos antes de Cristo, e mesmo antes de Homero (que dirá de Giotto), julgando que aquela inovação fosse acabar com a arte pictórica, deblaterou contra o italiano e tudo o que ele representava. Era um tradicionalista. Lembremos que essa reflexão de Anacreandro foi psicografada por um médium siracusano que, por acaso, era também crítico de arte.
Na verdade, Anacreandro apenas repetia a violência que sofreu de Neanderthal, o célebre executor de pinturas rupestres, que havia profetizado a pintura nas paredes de cavernas ser arte condenada ao extermínio pelos futuros pintores, que se valeriam de artifícios (telas, pincel, tintas, paletas e outras “tecnologias”) em substituição do talento humano. Neanderthal, embora primo distante de Sapiens, era já humano. Fazia arte.
A corrente de saudosismo e resistência à inovação seguiu a história da pintura afora: El Greco foi odiado pelo espírito de Giotto, o espírito de El Greco detestou Picasso. Os românticos quiseram sobrepujar os clássicos, os acadêmicos do Salon de Paris foram sobrepujados pelos refusés impressionistas, a quem acusavam de assassinos da grande Arte. Tudo até Niépce (ou foi Daguerre?) inventar, em pleno século XIX, auge da pintura, a tal fotografia. Os pintores todos se uniram para decretar o apocalipse.
A obra de arte, nessa era da reprodutibilidade técnica, bambeia forte, e não é só na pintura. Contudo, esta sobreviveu ao século XX adiante, de outra maneira, tornou-se mais artística e menos laboral, já não se contratavam pintores pro retrato da família, isso a câmera fazia melhor e mais barato. Como também o romance de hoje em dia não é mais objeto de entretenimento de massa, isso as séries de TV e os filmes de Hollywood fazem melhor e mais barato.
Creio que hoje os escritores que olham para um futuro dominado pela inteligência artificial cheguem a decretar a morte da profissão. É assustadora essa máquina pra quem eu ordeno "faça uma resenha do livro tal" ou "escreva um romance de uma heroína que congregue todas as matizes de exclusão social e que graças a seu talento literário crie uma história de superação" e ela faz, e faz melhor que o produto similar de booktuberes e escritores de blockbusters de carne e osso. A tecnologia deve existir pra que o homem não trabalhe, não se degrade nas malhas da exploração. Ainda não sabemos o que será da grande massa ociosa, mas isso é questão pros sociólogos. Genialidade artística e trabalho duro (nesses moldes capitalistas em que o valor do trabalho é usurpado por espertalhões) são conceitos opostos. Em suma, um verdadeiro artista deve viver de brisa, a sociedade precisa dele, e não de uma legião de pretendentes a artista. Sem esquecer que, na sociedade ideal, a todos deve ser proporcionada a faculdade de vir a ser artista, criar livremente sem precisar gerar mais valia.
Abstrações à parte, ao passo que a tecnologia parece golpear as antigas formas de expressão artística, por outro lado cria novas. Sem os aparatos que o progresso do engenho humano vai criando, a própria arte não evoluiria. A imprensa, a caneta, o pincel, a retífica do escultor, lembremos, são artefatos tecnológicos, tanto quanto o machado de pedra do nosso primo pintor Neanderthal.
Falo tudo isso pra chegar à conclusão de que não tarde estaremos vendo gente criar histórias verdadeiramente substanciosas com auxílio da inteligência artificial, como hoje os escritores usam o word pra contar caracteres, palavras e ver quantas repetições indesejáveis cometemos em nosso texto. A tecnologia não é inimiga da arte, antes é amiga da evolução. A fotografia, portanto, antes de matar a pintura tradicional, colocou-a no patamar de única possibilidade de o Homem saber como ele próprio enxerga seu mundo. Pablo Picasso, com sua pintura quadridimensional, o cubismo, deu um passo adiante das três dimensões onde a fotografia opera melhor que o humano – aliás, a fotografia é criação humana. Restava, dentro da fotografia, inicialmente mera inovação mecânica, se produzir arte. Sebastião Salgado, Cartier Bresson, Pierre Verger, Frank Capa e tantos outros se encarregaram de, ao longo do século XX, mostrar que fotografia é arte. Houve quem dissesse que o cinema haveria de matar a literatura. Não matou, e o cinema também é arte.
Salgado, que nos deixou ontem, abrindo mão das cores da alma (trocou pinceis pela câmera) e das cores reais (fotografou em preto e branco) mostrou como, dentro da limitação humana, demasiadamente humana, é que se cria a verdadeira arte.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum