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"A Reserva" enquadra em cenários deslumbrantes a podridão da elite dinamarquesa

Minissérie da Netflix expõe a vida das au pair, babás de luxo de origem humilde que servem às famílias endinheiradas

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Jornalista, editor de Cultura da Fórum, cantor, compositor e violeiro com vários discos gravados, torcedor do Peixe, autor de peças e trilhas de teatro, ateu e devoto de São Gonçalo - o santo violeiro.
"A Reserva" enquadra em cenários deslumbrantes a podridão da elite dinamarquesa
A Reserva. Divulgação

Aos que imaginam que os países escandinavos vivem com seus problemas resolvidos e são o paraíso na Terra, recomendo fortemente a minissérie “A Reserva”, de Ingeborg Topsøe, com Marie Bach Hansen, Excel Busano e Danica Curcic. Ela se passa em uma região chique da Dinamarca e estreou na Netflix nesta semana.

A resenha conta que o ponto de partida de toda a história é o desaparecimento de uma “au pair”. É uma palavra francesa que se refere a jovens mulheres que se mudam para outro país no sistema de intercâmbio.

Ao contrário dos intercâmbios que temos por essas plagas, em que jovens abastados vão estudar no exterior e passam a chamar sua nova família antipaticamente de “pais americanos”, por exemplo, estes do qual trata a série são um tanto diferentes.

As intercambistas, no caso, são de origem humilde e de países mais pobres (na série elas são das Filipinas) e vão para trabalhar como babás das crianças da casa. Em troca, elas recebem dinheiro, hospedagem, alimentação, além de sonhar com cursos, um visto de permanência entre outros benefícios que nunca se realizam.

A protagonista principal da série, em uma das cenas mais emblemáticas, é abordada por um colega de trabalho durante uma reunião que, ao descobrir que ela tem uma au pair, diz que a prática é colonialista. Para nossa surpresa, assim como ouvimos muito por aqui, ela afirma em sua defesa, entre outras coisas, que a moça é “como se fosse da família”.

Cenários e figurinos deslumbrantes

Há que se ressaltar que tudo na série é muito bem cuidado. Os cenários e figurinos são deslumbrantes. A série invade sem pudor residências extremamente luxuosas, interiores divinos, obras de arte espalhadas pelos quintais entre outros requintes arquitetônicos de grife. As au pair desfilam com certo constrangimento e recato, enquanto, além de cuidar das crianças, deixam a residência impecável, perfeita.

A trama se passa quase que totalmente na região costeira da Dinamarca, ao norte de Copenhagen, mais precisamente entre duas residências. Uma delas habitada pela família de um poderoso magnata e a outra pela de seu advogado, que frequentemente ouve piadas sobre sua origem social. As duas famílias, é claro, possuem suas au pair.

“Amar, Verbo Intransitivo”

De maneira muito sutil – e aqui talvez tenha alguma ponta de spoiler – o espectador começa a descobrir que há algo a mais na relação das moças com os meninos. Algo abordado de maneira mais clara no lindo romance “Amar, Verbo Intransitivo”, publicado em 1927 pelo modernista brasileiro Mário de Andrade.

No final das contas, elas estariam ali, entre uma tarefa e outra, prontas para saciar a solidão e a vida vazia dos garotos quase abandonados entre pais ocupados, games de última geração e bullying digital.

E é neste momento que entra uma policial para investigar o desaparecimento, que não por acaso, é negra. Ao entrar na casa do magnata, é humilhada de todas as formas pela esposa dele, uma mulher exageradamente intragável, racista, egoísta e capaz de se submeter a tudo para manter sua vida de sonhos.

“A Reserva” é um thriller emocionante e revelador de um mundo que nós, brasileiros, conhecemos de sobra. Tudo isto, no entanto, elevado à enésima potência e jogado para baixo dos panos de maneira tão eficiente quanto o requinte que nos é mostrado a cada frame.

Tudo o mais que puder ser dito daqui em diante é spoiler. Só nos resta mesmo, após assistir aos seis episódios, é não resistir ao clichê da citação de Hamlet, de William Shakespeare: há mesmo algo de podre no reino da Dinamarca.

 

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