A nova série da Netflix O Eternauta (2025), estrelada por Ricardo Darín, adapta um dos maiores clássicos das HQs latino-americanas. Escrito por Héctor Germán Oesterheld e ilustrado por Francisco Solano López, o quadrinho transformou a ficção científica em ferramenta política e memorialística.
Uma nevasca mortal, uma cidade sitiada e um herói improvável
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A trama parte de uma premissa simples e brutal: uma nevasca tóxica cobre Buenos Aires e mata instantaneamente quem entra em contato com os flocos. O caos se instala. Energia elétrica desaparece, comunicações colapsam. A cidade vira um campo de sobrevivência.
Em meio a esse colapso, Juan Salvo — interpretado por Darín — lidera um pequeno grupo de sobreviventes em busca de sua filha desaparecida. No caminho, enfrenta não apenas alienígenas, mas também humanos que exploram a tragédia para impor novas formas de dominação.
Vermes, Milei, Trump e autoritarismos contemporâneos
O Eternauta foi publicado entre 1957 e 1959, e ganhou reinterpretações em 1969 e 1976 — ano em que a Argentina mergulhou em uma violenta ditadura militar. Nesse mesmo período, Oesterheld aderiu à resistência armada dos Montoneros, grupo perseguido pelo regime.
A HQ carrega uma potente alegoria: os vermes alienígenas que invadem Buenos Aires não são apenas monstros espaciais. Eles representam o autoritarismo, a desumanização, o apagamento da crítica. São a encarnação simbólica dos regimes que silenciam e controlam.
Na série, alguns humanos se aliam aos vermes, abdicando da capacidade de pensar — uma clara alusão a quem coopera com regimes repressivos. A distopia se atualiza facilmente: as críticas da obra servem tanto ao século XX quanto a líderes autoritários do presente como Javier Milei e Donald Trump.
Guerrilha contra a barbárie: a resistência no centro da narrativa
Se de um lado os vermes buscam o domínio total, do outro se articula uma guerrilha. A luta pela sobrevivência se transforma em batalha por dignidade, por liberdade — e O Eternauta se torna, assim, um reflexo da própria vida de Oesterheld, que sacrificou tudo na luta contra a repressão.
A ficção se confunde com a realidade: a resistência armada que se organiza na HQ encontra eco na militância do autor. E o destino trágico da humanidade na trama simboliza o que a ditadura argentina fez com sua própria família.
A tragédia real por trás de “O Eternauta”
Héctor Germán Oesterheld foi sequestrado em abril de 1977, aos 58 anos. Foi levado a centros clandestinos como El Vesubio e Campo de Mayo. Testemunhos indicam que continuou escrevendo mesmo preso. Foi assassinado no final de 1978. Seu corpo jamais foi encontrado.
Seus quatro filhos — Diana, Beatriz, Marina e Estela — todas militantes dos Montoneros, também foram sequestradas e mortas. Diana, a mais velha, estava grávida e teria dado à luz antes de ser assassinada. O bebê desapareceu — mais um caso investigado pelas Abuelas de Plaza de Mayo. Os genros de Oesterheld também foram assassinados.
O objetivo da ditadura era claro: aniquilar a linhagem inteira do autor de “O Eternauta”. E conseguiu.
Um clássico necessário para tempos de exceção
“O Eternauta” é muito mais do que uma distopia. É um chamado à memória, uma denúncia simbólica das engrenagens autoritárias que se reconfiguram ao longo do tempo. A nevasca que silencia e mata ainda cai — agora em forma de desinformação, violência política, culto à força e apagamento da história.