OPINIÃO

Marçalismo e teologia coaching, a racionalidade neoliberal para as massas

Marçal fala para o “mano” – de uma maneira simples, acessível e direta – que, se ele se esforçar e seguir a cartilha coach vai ter o mesmo padrão de vida do “playboy”

Marçal com "motocas" na periferia de SP e falando sobre a coleção de carros de luxo.Créditos: Reprodução de vídeo / Instagram
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Em suas múltiplas críticas à religião, Nietzsche chegou a afirmar que o cristianismo nada mais é do que um platonismo vulgarizado para as massas. Ou seja, a principal crença do Ocidente consiste numa simplificação da filosofia de Platão, baseada na dicotomia corpo/espírito, com a separação entre mundo físico e mundo das ideias ("profano" e "sagrado", no caso do cristianismo)

Parafraseando o pensamento nietzschiano, e trazendo-o para o presente contexto, podemos dizer que a chamada “teologia coaching” (cujo maior expoente, sem dúvida, é o candidato a prefeito de São Paulo, Pablo Marçal) se trata da “racionalidade neoliberal” traduzida para o povo. 

Por “racionalidade neoliberal” podemos entender o modo de ser constitutivo dos diferentes sujeitos na sociedade capitalista contemporânea, em que a lógica da concorrência, típica de empresas, invade todo o tecido social. Assim como os citados platonismo e cristianismo, esta racionalidade também tem suas dicotomias: menos Estado, mais mercado; menos sociedade, mais indivíduo; menos serviços públicos, mais serviços privados, e por aí vai. 

No léxico da “racionalidade neoliberal”, marcado por eufemismos, empregado é “colaborador”, objetivo é “meta”, motorista de aplicativo é “empreendedor”, especulação é “capital financeiro” e exploração é “flexibilidade”. 

Além disso, há o nefasto princípio da “meritocracia”, que parte do pressuposto de que todos nós temos as mesmas oportunidades na vida, sendo cada um exclusivamente responsável por sua situação econômica e social. Lembrando a famosa frase da grande pensadora contemporânea “Filha do Didi”: “Todo mundo tem 24 horas no dia. Por que algumas pessoas conseguem fazer tantas coisas, e outras parecem não sair do lugar?” 

Claro que, para herdeiros de milionários, nepo babies e faria limers da vida, a racionalidade neoliberal soa como música para os ouvidos. Justifica todos os seus privilégios. Mas como explicar que pessoas da classe trabalhadora também adotem este tipo de pensamento? É aí que entram a teologia coaching e sua mais popular ramificação, o marçalismo.  

Como todo fenômeno emergente, ambos não surgiram “do nada”. Operam com determinados valores já presentes na sociedade. Como nos ensinou o velho Marx, a ideologia dominante, em cada época, é a ideologia da classe dominante. Consequentemente, a racionalidade neoliberal é incessantemente propagandeada nos mais diferentes setores, principalmente nos veículos de comunicação de massa, desde as telenovelas, passando pelos intervalos comerciais e chegando aos noticiários. 

Não por acaso, a mais recente peça publicitária de uma famosa marca de desodorante é protagonizada por um motoboy, que afirma que seu dia, devido a labuta intensa, “parece ter mais de 24 horas”. É a romantização da (auto)exploração. 

Portanto, muitas pessoas, bombardeadas praticamente o tempo todo pela propaganda da racionalidade neoliberal, acabam aderindo a tais preceitos (mesmo que sejam contrários aos seus interesses de classe). 

Caso o clássico “Tempos Moderno”, de Chaplin, tivesse uma versão contemporânea, provavelmente o protagonista, se pertencesse à classe média, estaria preenchendo planilhas às 22 horas de uma sexta-feira e se matriculando no décimo quinto MBA. Se fosse das classes populares, ele não estaria apertando parafusos loucamente em uma fábrica, mas passando dias e noites em uma correria frenética como entregador de aplicativo. 

Conforme aponta o filósofo Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”. Enquanto no capitalismo industrial, marcado pelas instituições disciplinares às quais se referia Foucault, o verbo norteador era “dever”, no capitalismo financeiro, o verbo predominante é “poder”. Eu posso me esforçar mais, eu posso trabalhar mais, eu posso me especializar mais. “Vive-se com a angústia de não estar fazendo tudo o que poderia ser feito, e se você não é um vencedor, a culpa é sua”, afirmou Han, em entrevista ao El País. Trata-se da clássica premissa: “Estude, enquanto eles dormem. Trabalhe, enquanto eles se divertem. Lute, enquanto eles descansam”. 

Já no âmbito religioso, a racionalidade neoliberal encontrou enorme aderência na chamada “teologia da prosperidade”, doutrina teológica neopentecostal segundo a qual a abundância material é o desejo de Deus para seus fiéis. Nessa lógica, o acúmulo de bens materiais – que certamente seria reprovado por Jesus, com seus ideais de desapego – é visto como algo positivo. São os “prósperos empreendimentos” com a benção dos céus. 

Como, no capitalismo, nada é tão ruim que não possa piorar, de acordo com o jornalista e teólogo Ranieri Costa, a teologia da prosperidade gerou uma espécie de ramificação laica: a teologia coaching. Só que, diferentemente de sua antecessora, na teologia coaching, o indivíduo “não se deu bem na vida porque não teve fé suficiente”; “mas por não ter se esforçado o suficiente”. Em outras palavras, o que antes era responsabilidade de Deus e de uma intervenção divina, agora é responsabilidade e está dentro do próprio homem (uma versão século XXI daquilo outrora conhecido como “self-made man”). 

É inegável que as mentiras da teologia coaching têm forte apelo nas classes populares. Diante da situação cotidiana adversa, as pessoas querem se apegar a soluções fáceis. No capitalismo, o sonho de todos é enriquecer. Se for mais rápido, por meio de apostas online, seguindo um manual escrito por um coach picareta ou ajuda divina, melhor ainda! Remetendo a Bourdieu, a magia é o único apego para quem não tem perspectiva. 

E assim figuras como Marçal chegam às periferias. Com uma linguagem supostamente da “quebrada”, ele consegue seduzir muitos jovens, público em fase de autoafirmação e mais vulnerável ao bombardeio publicitário nosso de cada dia. Desse modo, Marçal fala, para o “mano” – de uma maneira simples, acessível e direta – que, se ele se esforçar e seguir a cartilha coach, vai ter o mesmo padrão de vida do “playboy”. 

No entanto, Bauman dizia que o consumo é uma festa em que todos são convidados, mas nem todos podem entrar. Além disso, é importante lembrar que, na corrida para o sucesso, o mano largou quilômetros de distância atrás do playboy. 

Por outro lado, diante dessa realidade, é importante que os setores progressistas se mobilizem para desmascarar as linhas de pensamento que defendem a racionalidade neoliberal junto à população. Mostrar que o sistema econômico que tanto apregoam é o maior responsável pela exploração e autoexploração dos trabalhadores, por suas condições de vida adversas (e não o suposto esforço ineficiente das pessoas). 

Caso contrário, se essa empreitada não for bem-sucedida, como aponta um meme bastante compartilhado nas redes sociais, porém de autoria desconhecida, o produto mais bem acabado e produzido em larga em escala do capitalismo continuará sendo o “pobre de direita”.