CINEMA

Divertidamente 2: a Alegria, o Raiva e a Revolução - Por Raphael Fagundes

Como o filme se trata de um ambiente escolar, nada melhor que partirmos de Paulo Freire para compreender tal representação artística

Escrito em Opinião el
Doutor em História Política na UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
Divertidamente 2: a Alegria, o Raiva e a Revolução - Por Raphael Fagundes
Divertidamente 2. Reprodução/X/Pixar

O cinema global é sem dúvida fragmentado. “Os desenhos animados não se reduzem mais a seu público infantil, mas se dirigem aos adultos”, dizem Gilles Lipovetsky e Jean Serroy [1].

“Dos 8 aos 80” foi a frase usada por um produtor americano (Wangler) que, segundo Jean Bernardet, consiste no fato de que um “filme deve conter ingredientes suscetíveis de agradar ao público dos 8 aos 80 anos” [2]. Foi assim que a Disney adotou um modelo: “um cinema que fale às crianças e, mais ainda, como se fosse um outro filme, às crianças que dormem em cada um dos pais” [3].

Foi certamente essa fórmula que fez a Disney faturar mais de 100 milhões de dólares com Divertidamente 2, “a melhor segunda semana da história para um filme de animação” nos Estados Unidos [4].

A racionalidade iluminista, nas últimas décadas do século XVIII, colocou as emoções em segundo plano para, assim, compreender as ações humanas. Em nome do progresso capitalista, a ciência, o racional, o lógico, passaram a ter um grande destaque na tomada de decisões dos homens sábios [5]. No fim, o que fez foi racionalizar as emoções, tornando-as um componente da moral.

Mas com o advento do século XX, “a empresa capitalista moderna é caracterizada por redes sociais mais densas, por uma estrutura hierárquica mais avançada do que a apresentada pelas manufaturas da época industrial”. O “capitalismo corporativo” promoveu, portanto, uma “transformação da subjetividade emocional” impondo a “necessidade de criar novos modelos de cooperação e de controle”.

De acordo com Eva Illouz e Yara Benger Alaluf, “a necessidade do ‘capitalismo corporativo’ de controlar a subjetividade de seus trabalhadores deu origem ao capitalismo emocional” [6].

Segundo as autoras, as emoções ligadas ao capitalismo buscam aumentar a eficácia dos processos de trabalho; o investimento de uma psicologia positiva na formação de uma nova ética, a do “trabalhador feliz”; e a manipulação e mobilização ativas e conscientes das emoções na cultura dos consumidores [7]. Esses elementos são trabalhados desde a infância, em projetos pedagógicos financiados pelo Banco Mundial, para a fabricação de mão de obra resiliente e criativa.

Se durante a Idade Média, a tristeza era uma virtude em algumas “comunidades emocionais” [8], no capitalismo emocional a felicidade é o centro das atenções. A felicidade estava relacionada “ao destino ou a circunstâncias particulares - ausência de problemas, corolário de uma vida plena, ou então mero prêmio de consolação para os pobres de espírito. Hoje [por sua vez] ela costuma ser vista como uma atitude passível de ser engendrada pela força de vontade; resultado do treino de nossa força interior e nosso eu autêntico; única meta que faz a vida valer a pena; o padrão pelo qual devemos medir o valor de nossa biografia, o tamanho de nossos sucessos e fracassos; e a magnitude de nosso desenvolvimento psíquico e emocional” [9]. Assim somos apresentados à Happycracia.

Porém a própria aceleração do tempo, provocada pelas necessidades de lucro e circulação de mercadorias, trouxe à tona uma emoção que marca a sociedade do capitalismo tardio. Mark Fisher destaca que “o afeto problemático chave que o capitalismo contemporâneo agora enfrenta é a ansiedade” [10]. Em Divertidamente 2, a Alegria e outras emoções são expulsas do controle da jovem Riley. A ansiedade assume o comando e impõe uma nova Cronopolítica [11]. O tempo é administrado através de uma nova forma de poder dirigido pela Ansiedade. O futuro passa a ser um problema que precisa ser resolvido imediatamente.

Os antigos administradores da mente da jovem partem em uma jornada em busca da “autêntica Riley”, a feliz, que se considera uma boa amiga.

Lógico que a narrativa do filme é uma emodities, mercadorias emocionais, que “podem começar como teorias desenvolvidas nas universidades, mas logo passam a incidir sobre mercados variados, como grandes empresas, fundos de pesquisa ou a indústria do estilo de vida dos consumidores” [12]. Entretanto, uma cena me chamou a atenção.

A Alegria e o Raiva invadem o local de trabalho onde vários operários são forçados a produzir ideias para solucionar um problema de “ansiedade” da Riley. As emoções de infância estavam fugindo da “polícia da mente” quando a Alegria começa um discurso para conscientizar os operários. O Raiva logo entra em cena de punhos cerrados para radicalizar o discurso contra a cronopolítica despótica da Ansiedade que aparece numa imensa tela como um grande ditador que oprime os trabalhadores.

Alegria e Raiva são as principais emoções para uma revolução

Como o filme se trata de um ambiente escolar, nada melhor que partirmos de Paulo Freire para compreender tal representação artística. Nosso célebre patrono da educação traz para a reflexão do leitor de Pedagogia da Autonomia, o conceito de “justa raiva”.

“Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade” [13].

Em nota de rodapé, Freire exemplifica o seu conceito de raiva: “A de Cristo contra os vendilhões do Templo. A dos progressistas contra os inimigos da reforma agrária, a dos ofendidos contra a violência de toda discriminação, de classe, de raça, de gênero. A dos injustiçados contra a impunidade. A de quem tem fome contra a forma luxuriosa com que alguns, mais do que comem, esbanjam e transformam a vida num desfrute” [14].

Ou seja, a emoção que impulsiona a revolta não é a inveja como acreditava o grande Tocqueville (ao lado de conservadores) que dizia: “A inveja que anima as classes inferiores da França contra as superiores…” [15] Mas a raiva. E não somente a raiva, como a alegria.

“O meu envolvimento com a prática educativa, sabidamente política, moral, gnosiológica, jamais deixou de ser feito com alegria” [16], destaca Freire. Contudo, a alegria nunca pode estar sozinha, pelo menos sem a presença da esperança. É somente com a Esperança que a Alegria pode disputar a Cronopolítica. “A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica” e “só há História onde há tempo problematizado…”[17]

O tempo todo a Ansiedade afirma que é “assim que tem que ser”, que “vai ser melhor assim” etc.. impedindo que o futuro seja problematizado. Embora ela tenha convencido o Medo, que elogia a Ansiedade em diversos momentos do filme, a Raiva e a Alegria são os mais atuantes, pois pareciam os mais esperançosos.

Ao misturar as emoções, Raiva e Alegria, ao sentimento de esperança, Freire começa o último parágrafo do subtítulo “Ensinar exige alegria e esperança”: “Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga, porque histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação. [...] Meu direito à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo ‘pré-dado’, mas um desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de ‘ser mais’ inscrito na natureza dos seres humanos” [18].

Talvez o filme não tenha explorado tanto a questão da esperança para não parecer muito ousado. Preferiu fechar no presentismo. A Alegria contém a Ansiedade dizendo que “não é para pensar nisso agora”. Preferiu manter um presente autêntico, baseado no passado, no que sempre foi, ao em vez de “um futuro do tipo autêntico, aberto como processo” [19]. Um presente que não está interessado em mudanças. Até porque, como disse o filósofo Ernst Bloch, “nos sonhos de uma vida melhor sempre residiu o anseio de felicidade, que só pode ser inaugurado pelo marxismo” [20]. Ou seja, é possível a ansiedade e alegria conviverem, acelerar a vinda de um mundo melhor, mas onde reina a insegurança, forjada pelo capital que preserva a desigualdade, isso se torna inapropriado, uma impossibilidade.

Mas, enfim, continuo citando o curioso comentário de Ludwig Wittgenstein, em 1947, sobre o cinema norte-americano: “Foram muitas as vezes em que aprendi algo a partir de um filme americano tolo” [21].

Notas do autor

[1] LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Ed. Sulina, Porto Alegre: 2009. p. 17.

[2] BERNARDET, Jean. O que é cinema? Rio de Janeiro: Brasiliense, 1990. p. 62

[3] MARTEL, F. Mainstream: a guerra global das mídias e das culturas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 73.

[4] https://www.omelete.com.br/bilheteria-usa/21-junho-2024

[5] NAGY, P. A emoção na Idade Média: um período de razão. In: CORBIN, A; COURTINE, J-J; VIGARELLO, G. História das emoções. V. 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 171.

[6] ILLOUZ, E. e ALALUF, Y. O capitalismo emocional. In: CORBIN, A; COURTINE, J-J; VIGARELLO, G. História das emoções. V. 3. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 75.

[7] Id., p. 76.

[8] ROSENWEIN, B. A Alta Idade Média. In: CORBIN, A; COURTINE, J-J; VIGARELLO, G. História das emoções. V. 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 141.

[9] CABANAS, E. e ILLOUZ, E. Happycracia: fabricando cidadãos felizes. São Paulo: Ibuprofeno, 2022, p. 13.

[10] FISHER, M. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 156.

[11] ROSA, H. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. São Paulo: Unesp, 2019, p. 24.

[12] CABANAS, E. e ILLOUZ, E., op. Cit., p. 24.

[13] FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 45.

[14] Ibidem.

[15] FUREIX, E. As emoções no protesto. In: CORBIN, A; COURTINE, J-J; VIGARELLO, G. História das emoções. V. 2. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 443.

[16] FREIRE., op. Cit., p. 80.

[17] Id., p. 81.

[18] Id., p. 84.

[19] BLOCH, E. O princípio esperança. V. 1. Rio de Janeiro: EdUerj: Contraponto, 2005, p. 18.

[20] Id., p. 27.

[21] Apud: https://www.scielo.br/j/edreal/a/THkRbjjywy7G8JkJh4vVY3q/?lang=pt

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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