DEBATES

Os Festivais dos Cinemas Brasileiros no exterior: um potente cartão-de-visitas para os nossos filmes

A importância dos festivais e, aqui me refiro especialmente aos festivais brasilianistas no exterior, vai muito além do argumento da nossa cultura expandindo pelo mundo

Ópera de Bordeaux, iluminada com as cores do movimento LGBTQIA + em Junho de 2024.Créditos: Liliane Mutti
Por
Escrito en DEBATES el

Escrevo do trem, voltando de Bordeaux, onde estive para participar do debate da circulação do 26º Festival dos Cinemas Brasileiros de Paris, que selecionou sete dos filmes da programação oficial deste ano para exibição no interior da França. Estive representando o filme “Madeleine à Paris”, que rodei durante os últimos seis anos entre Paris e Santo Amaro da Purificação, na Bahia. No Cinema Utopia, uma antiga igreja que se tornou cinema de rua, não pude deixar de notar três outros filmes em cartaz dirigidos por cineastas brasileiros:  “A Flor do Buriti”, de Renée Nader Messora e João Salaviza, “A Queda do Céu”, de Gabriela Carneiro e Erik Rocha e “Firebrand”, de Karim Aïnouz. Todos filmes que começaram suas carreiras pelos festivais de cinema. 

A importância dos festivais e, aqui me refiro especialmente aos festivais brasilianistas no exterior, vai muito além do argumento da nossa cultura expandindo pelo mundo. Eles levam obras de cineastas, atores, personagens, produtores, que encontram outras pessoas; diretoras, atrizes, produtoras de diversos cantos do mundo, estabelecendo pontes e fazendo a roda do cinema girar. No final da sessão de “Madeleine à Paris”, uma espectadora perguntou à Silvia Balea, francesa especialista em cinema latino,  que divide a curadoria dessa circulação com Katia Adler, quando poderia ver a seleção do festival novamente. Um jovem espectador me procurou para perguntar quando o filme chegaria às salas do Brasil; gostaria de avisar a família que mora no país.

A estratégia de lançar o filme no exterior e depois chegar ao Brasil, que já tinha experimentando com o meu filme de estreia “Miúcha, a voz da Bossa Nova”, o qual divido a direção com Daniel Zarvos, no nosso caso, tem sido menos uma escolha, e mais um acolhimento. O circuito dos festivais brasilianistas - no caso do “Madeleine” - e europeus e norte-americanos, no caso do “Miúcha”, acolheram bem os filmes e foram nesses festivais, que os distribuidores assistiram a obra e se interessaram. Isso aconteceu com  a distribuidora portuguesa Zero em Comportamento, responsável pela negociação do filme na companhia aérea TAP. A distribuição na europa, de modo geral, é co-financiada por agências de cinemas, um modelo bem interessante, no qual os festivais e os distribuidores são valorizados como parte do ecossistema do cinema recebendo financiamento público bancado pelo próprio setor, em um círculo virtuoso que se retroalimenta. 

Me pergunto se, sem o Festival dos Cinemas Brasileiros de Paris, “Madeleine à Paris” chegaria ao interior da França. Arrisco dizer que talvez não. O filme trata de temas como imigração, especialmente a diáspora brasileira na capital francesa, a partir do olhar anti-eurocêntrico de Roberto Chaves, um dançarino que trabalha no cabaré Paraíso Latino. O assunto é desconfortável para um país que se vê às voltas com debates sobre neocolonialismo e ainda mantém colônias em países africanos, na Oceania e na América Latina, aos quais chama com o eufemismo de “departamento ultramarinos”.

Depois do debate, saí da sala do Cinema Utopia com a notícia de que será inaugurado em breve uma nova sala desse cinema, dessa vez, do outro lado do rio onde mora a população menos abastada de Bordeaux. O cinema ainda pode ser um bom negócio, os exibidores franceses parecem apostar. A retomada do cinema também colhe frutos para os nossos cinemas. A próxima edição do Festival dos Cinemas Brasileiros de Paris  pode vir a ocupar uma nova sala no Cinema L’Arlequin, em plena Saint Germain-des-Prés - no circuito do festival em 2025, ano do Brasil na França. A iniciativa promete vir para ficar, afinal, nesse ano, a 26ª edição do festival bateu recordes de público, tendo a sala lotada em várias sessões, inclusive “Madeleine à Paris”. 

O protagonismo de um personagem queer, que o filme escolhe como fio condutor, tem uma recepção diferente quando falamos de Paris, cidade mais afeita a cosmopolitismos, governada por uma prefeita de esquerda. Já o interior da França, mesmo em Bordeaux, atualmente governada pelos ecologistas, ainda guarda traços claramente conservadores. Sabemos que o cinema de autor não existe para entreter ou vender cartões postais. Seus filmes, nossos filmes, podem incomodar especialmente o espectador atraído pelo Brasil-destino-de-férias. Mas é através dele - do cinema de autor e de autora - que estamos sendo vistos fora do país, basta olhar a programação do Cinema Utopia. E isso nos coloca em uma esfera mais ampla de repertórios, tanto de ecoar mundos possíveis, como de construir parcerias além das fronteiras. 

Nessa ida ao festival em Bordeaux, durante a semana da parada do orgulho LGBTQIA+, visitei a ópera da cidade, bem mais acessível para tornar-se um set de filmagens que a Ópera Garnier em Paris, cidade tão cara para filmar quanto Nova York. O roteiro do meu próximo filme se passa em uma ópera, com uma protagonista brasileira, realizado em coprodução com Portugal e rodado entre o Rio de Janeiro e a França. Isso me faz pensar que somos brasileiros e brasileiras onde quer que estejamos, mas, além disso, existem muitos Brasis em nós. No Brasil que sonho levar para as telas, a heroína se chama Maria D’Apparecida, é negra e cantora lírica. Uma ficção baseada em uma história real. Sim, os cinemas brasileiros são diversos e a circulação mundial dos nossos filmes pode se tornar cada vez mais uma realidade.


Liliane Mutti é cineasta brasileira radicada na França, diretora e roteirista de “Miúcha, a voz da Bossa Nova”, “Elle, Marielle Franco”, “Salut, mes ami.e.s !”, “Madeleine à Paris” e atualmente finaliza seu novo longa-metragem, “Ilha da Conceição”, sobre uma ilha que desapareceu na Baía da Guanabara.