O livro 'O Avesso da Pele", de autoria de Jeferson Tenório, foi lançado em 2020 e logo se tornou um fenômeno da literatura brasileira contemporânea. Tanto é que, no ano seguinte, a obra recebeu o Prêmio Jabuti de 2021 na categoria "Romance Literário".
Recentemente, a obra voltou para os holofotes, mas por um motivo lamentável: governos estaduais e municipais alinhados à direita brasileira censuraram a obra e ordenaram a retirada da obra da lista de leitura escolar.
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Como alegação, os governos que censuraram o livro "O Avesso da Pele" alegaram que a obra possui "cunho sexual" e "linguagem inapropriada" para adolescentes. Dessa maneira, os governadores do Mato Grosso do Sul (Eduardo Ridel-PSD), Goiás (Ronaldo Caiado-UB) e Paraná (Ratinho Jr.-PSD) determinaram a retirada do livro da lista de leitura dos estudantes.
Afinal, do que trata o livro "O Avesso da Pele"?
Muito provavelmente, os governadores que censuraram o livro e outros personagens do espectro conservador não leram "O Avesso da Pele", pois, se pegarmos todos os momentos em que questões sexuais são abordadas, não somam mais que 15 linhas. Há uma cortina de fumaça aqui.
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O ponto de partida de "O Avesso da Pele" é a busca de Pedro, após a morte de seu pai, a partir das memórias afetivas e materiais deixadas pelo seu progenitor, que era professor da rede pública, reconstruir as suas lembranças e afetos maternais e paternais.
A partir do exercício memorial do personagem Pedro, o escritor Jeferson Tenório traça uma arqueologia da construção da estrutura racista no Brasil que nos leva ao fim da escravidão e à primeira etapa pós-colonial do país. Dessa maneira, a partir das histórias do pai e da mãe do personagem central, nos é apresentada a formação geográfica, de classe e, consequentemente, racial das cidades de Porto Alegre, Florianópolis e Rio de Janeiro. Organização social que segue intocada até hoje.
O processo de desumanização
No contexto geral de "O Avesso da Pele", a questão sexual é quase insignificante, visto que o foco do livro é apresentar como o racismo estruturado desumaniza, de forma gradual e violenta, as pessoas negras do país. Daí que Jeferson Tenório mostra, de maneira didática, os processos de tal política que insiste em expulsar as pessoas negras da esfera da cidadania.
A partir das memórias de Pedro, acompanhamos as batalhas de Henrique (pai) e Martha (mãe), que aqui podem ser lidas como alegorias sobre o cotidiano de pessoas negras no Brasil, que passam a entender ao longo de suas respectivas existências que o espaço público não é para eles. Os seus corpos estão sempre na expectativa de que serão expulsos.
Em determinado momento da obra, Jeferson Tenório faz uma lista, uma espécie de relatório de todos os enquadros policiais que o pai de Pedro recebeu ao longo da vida, mesmo quando homem adulto e professor (como o próprio personagem reflete), o seu corpo nunca deixou de ser suspeito. Uma realidade que persiste no Brasil.
A violência colonial
A estrutura narrativa de Jeferson Tenório para tratar, a partir do relato geracional, da violência contra as pessoas negras no Brasil e suas consequências psíquicas, nos faz lembrar do livro "O Alegre Canto da Perdiz", da escritora moçambicana Paulina Chiziane.
Em "O Alegre Canto da Perdiz", Chiziane conta a história de três gerações de mulheres (mãe, filha e neta) para tratar da violência colonial e suas perturbações psíquicas vivenciadas pelas personagens.
Tenório e Chiziane, com isso, nos apresentam obras potentes e, por causa disso, muitas vezes dolorosas, sobre como a violência racista estruturada no período colonial permanece na contemporaneidade e ganha materialização com as forças militares. Eis aqui o problema para aqueles que hoje perseguem e censuram o livro "O Avesso da Pele".
Como apontado no início deste texto, o argumento de que o livro “O Avesso da Pele” tenha “cunho sexual” não passa de cortina de fumaça para esconder o real motivo que leva políticos conservadores a censurarem a obra: a violência policial contra as pessoas negras.
A obra de Jeferson Tenório é em sua maior parte profundamente poética e emocionante, mas quando necessário, profundamente dura no que diz respeito ao desnudar a política de segurança pública executada no Brasil, que persegue e mata, em sua maioria, o corpo de pessoas negras. É por este motivo que governadores e outros agentes da direita querem censurar o livro “O Avesso da Pele”.