As relações entre extrema direita, Estado de Israel e evangélicos (sobretudo a corrente neopentecostal) têm sido uma das pautas mais debatidas na esquerda ultimamente. Trata-se de uma questão aparentemente inusitada, haja vista que os israelenses não são cristãos; tampouco aceitam Jesus como Messias (ao contrário do que pensavam alguns “patriotas” presentes na Avenida Paulista, no último dia 25 de fevereiro). Além disso, historicamente, a extrema direita se caracteriza por ser antissemita, o que não condiz com a defesa de um país onde a maioria da população é de origem judia.
A princípio, essa aliança entre evangélicos e sionismo está ligada à uma análise invertida das chamadas Escrituras Sagradas. Tal narrativa diz que a segunda vinda do Messias à Terra só seria concretizada após a restauração do 'Reino de Israel' (e não o contrário). Assim, nessa deturpada visão neopentecostal, a consolidação do Estado de Israel adiantaria a volta de Jesus, para presidir o Juízo Final, sinalizando o “Fim dos Tempos”. Não por acaso, em recente polêmica, a cantora Baby do Brasil (outrora Baby Consuelo) afirmou que “o apocalipse está próximo”.
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Por outro lado, certas linhas analíticas apontam que o apoio à Israel (e consequentemente ao genocídio do povo palestino) é um dos fatores de unificação da extrema direita em âmbito global. Isso explica a ferrenha defesa do Estado sionista por Donald Trump, Javier Milei, Viktor Orbán e Jair Bolsonaro. Nessa lógica, a proximidade entre bolsonaristas e Israel também serve como álibi para os seguidores do inelegível se defenderam da legitima acusação de que suas ideias são próximas ao nazismo. “Como podemos ser nazistas se apoiamos Israel?”, costumam insinuar.
Aqui entra a capciosa armadilha discursiva, presente na falsa equivalência entre semitismo (que se refere, entre outros povos, aos judeus) e sionismo (ligado ao Estado de Israel). Aliás, conforme a história nos mostra, os adeptos do movimento sionista não se opunham ao nazismo (jamais apoiaram qualquer tipo de boicote ao regime do Führer). Inclusive mantinham intensas relações com o governo de Hitler (como, por exemplo, no “Acordo de Haavara”, assinado em 1933, que permitiu a cerca de 60 mil judeus que moravam na Alemanha a possibilidade de migrar para a Palestina, com objetivo de ocupar territórios dos palestinos).
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Portanto, diferentemente do que é vendido pela propaganda ocidental, o sionismo não é um “movimento de libertação nacional de um povo”; é uma “doutrina racista, colonialista e supremacista”.
Além dos argumentos levantados acima, sobre as relações próximas entre neopentecostais, extrema-direita e Estado de Israel, poderemos adicionar à essa discussão o excelente livro “O Dogma de Cristo”, do psicanalista, filósofo e sociólogo alemão Erich Fromm.
Em sua obra, Fromm parte da tese de que, na Bíblia, livro sagrado do cristianismo, são apresentados “dois deuses”; completamente diferentes: o “Deus mau”, do Antigo Testamento; e o “Deus bom”, referente ao Novo Testamento.
De fato, não é difícil constatar que, no Antigo Testamento, Deus é vingativo e rancoroso; responsável direto pelo extermínio de todos aqueles que não seguiam seus ditames. Por outro lado, no Novo Testamento, Deus é amor, benevolente, perfeito, justo e misericordioso.
Assim, a partir dos preceitos psicanalíticos, calcados nos antagonismos entre pai e filho, Erich Fromm compreende Jesus (o “Deus bom”) como a negação do pai: o “Deus mau”. Não por acaso, o Novo Testamento tem início, justamente, com o nascimento de Jesus.
Esse “Deus mau”, do Antigo Testamento (o “Deus de Israel”), é grande referência para as pregações de pastores de igrejas neopentecostais e, como sabemos, uma das principais bases do bolsonarismo, naquilo que intelectuais como Jessé Souza e Vladimir Safatle qualificam como “fascismo popular”.
Também não é coincidência o fato de o “Deus mau” ter atitudes que se assemelham a políticos genocidas de extrema direita, seja em relação ao processo de limpeza étnica de povos considerados “inferiores”, seja na maneira negacionista como conduzem um país em um contexto de crise sanitária.
De acordo com levantamento sobre o conteúdo presente na Bíblia, feito pelo blogueiro estadunidense Steve Wells, Deus é responsável por exatas 2.270.365 mortes, sendo que mais de 99% desses óbitos estão no Velho Testamento (ou seja, o “Deus mau”). A maior matança foi quando Deus tirou a vida de um milhão de pessoas e destruiu todas as cidades nos arredores de Gerara (na mesma Palestina que hoje sofre com a limpeza étnica comandada pelo sionismo).
Voltando ao Brasil do século XXI, para os propósitos da chamada “teologia do domínio” – que, basicamente, busca submeter a vida pública ao domínio religioso dos preceitos cristãos – é mais interessante recorrer ao “Deus de Israel”, ligado às questões políticas, do que ao “Deus bom”, inerentemente laico (conforme comprovam algumas falas de sua personificação, Jesus, como “O meu reino não é deste mundo” e “Dai, pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”).
Como bem escreveu o economista e mestre em linguística, Jair de Souza, em artigo publicado no Brasil 247, “os exemplos de vida de Jesus servem muito mais para atrapalhar os planos dos sionistas cristãos do que contribuir para sua realização. [...] Para fugir de tamanha inocultável evidência, os sionistas cristãos vêm procurando se embasar tão somente nos textos do Velho Testamento, com um afastamento de tudo o que concerne diretamente a Jesus”.
Em contrapartida, alguém pode argumentar que bolsonaristas e neopentecostais, apesar de seguirem o Antigo Testamento, evocam constante o nome de Jesus. Mero recurso retórico!
Lembrando uma postagem que fez bastante sucesso nas redes sociais há algum tempo, associar Jair Bolsonaro e Jesus, seria pensar o Messias, na Galileia, dizendo a Maria Madalena “não te estupro porque você não merece”; vendo Lázaro morto e afirmar “e daí, não sou coveiro” ou, diante de um deficiente físico, comentar: “o que quer que eu faça, não sou médico”. Evidentemente, são hipóteses inconcebíveis.
Também não deixa de ser contraditório e inusitado constatar que muitos indivíduos que se consideram “evangélicos” não seguem os evangelhos (que, na Bíblia, estão no Novo Testamento). “Jesus atrapalha”, diz a orientação de um famoso líder religioso aos pastores de sua igreja.
Em suma, as associações entre extrema-direita, Estado de Israel e evangélicos envolvem questões religiosas, psicológicas, econômicas, políticas e culturais que estão muito além do apoio a um determinado candidato ou a peregrinações de evangélicos à Terra Santa. Não foi sem propósito a declaração de Benjamin Netanyahu, quando veio ao Brasil em 2018, sobre os evangélicos serem os melhores amigos de Israel.
Trata-se de uma perigosa aliança que coloca em risco não apenas a democracia e o Estado Laico, mas a própria existência do povo palestino e de outras minorias sociais.
*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp.