Atualmente, muito se tem especulado sobre os perigos do uso constante de recursos relacionados à Inteligência Artificial (IA), como o ChatGPT, e suas múltiplas possibilidades para criação de textos. Há quem fale, inclusive, em “morte do escritor”.
Alarmismos à parte, antes de nos precipitarmos, e apresentar visões demasiadamente pessimistas ou otimistas sobre essa complexa e intrigante questão, é importante refletir sobre o que é preciso para ser um “bom escritor”.
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Obviamente, “escrever bem” tem como condição sine qua non ser um bom leitor. Em contrapartida, nem tão óbvio assim são os conceitos de leitor e leitura.
Para compreender os diferentes tipos de leitor, bem como os diferentes modos de leitura, recorrerei ao livro “Humanos Hiper-Híbridos: Linguagens e cultura na segunda era da internet”, da professora Lucia Santaella, mais precisamente ao quinto capítulo: “Patrimônio cultural, memória e leitura”.
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A partir do pensamento de Vilm Flusser, Santaella apresenta três tipos de leitores: o sobrevoar apressado, o farejar desconfiado e o desdobrar cuidadoso. Este último leitor corresponde à forma crítica de ler em oposição à primeira, que se caracteriza como uma leitura ao acaso, adivinhatória, em que se procede por saltos e associações. Por sua vez, o farejar desconfiado caracteriza a leitura como ato detetivesco.
Ainda de acordo com a autora, podemos pensar em modos de ler que implicam graus crescentes de complexidade, que vão do compreender ao interpretar, até atingir o nível de diálogo crítico com o texto.
Compreender significa ser capaz de traduzir, em palavras próprias, o que o texto quer dizer. Interpretar corresponde a um nível de penetração mais íntima no texto, que pressupõe leituras correlatas (ou do mesmo autor ou de outros autores que trataram de temas similares). Já o diálogo crítico quer dizer que o nível de repertório do leitor o habilita a confrontar suas próprias ideias com aquelas que o texto expressa.
Enquanto a compreensão diz respeito ao entendimento, relativamente seguro, daquilo que o texto pretendeu dizer e transmitir, a interpretação significa entrar em negociações bilaterais com o texto. Já o terceiro grau de leitura só é alcançado quando o repertório do leitor está à altura de um confronto com as ideias e argumentos que são apresentados em um texto. Desse modo, concluímos que o tipo de leitor e o modo de leitura definirão, em última instância, a qualidade do escritor.
Portanto, como se pôde perceber, a partir das considerações acima, ler e, consequentemente, escrever, não são atividades simples, significam ir além de decodificar e colocar palavras no papel ou em uma tela; envolvem relacionar informações, capacidades cognitivas, julgamentos, memórias, percepções, opiniões pessoais, visões de mundo, emoções, negociações de sentidos, contextos, experiências de vida, prática e inspiração. Mesmo que essa “inspiração” seja o prazo de entrega do conteúdo de um livro, como bem ironizou Luís Fernando Veríssimo certa vez.
Sendo assim, não é difícil inferir que nenhuma máquina, por mais avançada que seja a tecnologia, desenvolva de forma satisfatória as capacidades elencadas no parágrafo anterior. Falta sensibilidade humana. Ler é muito mais do que acumular informações. Escrever é muito mais do que cruzar dados (como procede o ChatGPT). Lembrando Gilberto Gil: “o cérebro eletrônico faz quase tudo”.
É claro que os recursos disponíveis nas recentes ferramentas de IA podem nos fornecer ideias interessantes para a construção de um artigo, por exemplo. Mas para isso o antecessor Google, o “pai dos burros” contemporâneo, já nos auxilia. Além do mais, basta um simples teste para constatar a qualidade duvidosa dos textos gerados artificialmente. Não raro apresentam leituras cansativas e inconsistências. Dificilmente poderemos utilizar esses textos para um trabalho universitário, por exemplo, sem alterações significativas.
Em suma, ChatGPT e similares “não escrevem bem”, porque também “não leem bem” (características humanas por excelência). Ou, como dizia Nietzsche, demasiadamente humanas.