OPINIÃO

Dias e Noites na América Latina - por Ana Beatriz Prudente Alckmin

Nas veias abertas da América Latina, há muito do sangue de inocentes. A estrutura atual de norte e sul global começou aqui. Além da América Latina ter seus próprios traumas, digamos que, de uma certa forma, aqui começaram muitos traumas do mundo

Cena da peça "Dias e Noites de Amor e Guerra".Créditos: Divulgação
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"A América Latina foi tanto o espaço original como o tempo inaugural do período histórico e do mundo que ainda habitamos. Nesse sentido específico, foi a primeira entidade/identidade histórica do atual sistema mundo colonial/moderno e de todo o período da modernidade". (Quijano, 2005, "Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina").

A colonização nas Américas abrangeu um extenso período, iniciando-se no final do século XV e estendendo-se até o século XIX. Durante esse tempo, vastas áreas do continente foram exploradas, marcando um contexto da busca por riquezas a partir de grandes navegações portuguesas e espanholas. No que diz respeito à chamada América Espanhola, o contato dos colonizadores com civilizações sofisticadas como os Incas e Astecas representou um desafio. Portanto, a narrativa de que, ao chegar nas Américas, colonizadores europeus conseguiram facilmente dominar os povos ameríndios é uma falácia. A exploração de recursos naturais, principalmente metais preciosos, pelos espanhóis foi um dos principais aspectos desse processo, assim como a influência da religião católica e a estruturação social das colônias. A exploração colonial se dá por três eixos: extração de recursos naturais, estruturação social com a escravização como base e a religião católica como legitimadora desta estrutura social. Houve um processo de escravização tanto da população nativa quanto da população trazida da África através do tráfico transatlântico de escravizados, lembrando que na América Portuguesa também tivemos a presença de escravizados trazidos do Oriente. Este período colonial, que marcou profundamente a história das Américas, também serviu de cenário para futuras lutas pela independência das colônias e a busca por autonomia política e econômica.

Vale pontuar que essa independência e autonomia ainda não foram plenamente conquistadas na América Latina. Pulando alguns séculos, chegando ao século XX, a América Latina viveu um panorama triste, marcado por autoritarismo e ditaduras que infringiram os Direitos Humanos de forma muito virulenta, e por desaparecimentos de pessoas e assassinatos em massa promovidos por autoridades. De uma certa forma é possível observar os resquícios do colonialismo dos séculos XV a XIX. A peça "Dias e Noites de Amor e Guerra" traz justamente uma reflexão sobre essa América Latina. Com um texto denso e com dramaticidade que vai do começo ao fim na atuação dos atores, a obra teatral, construída a partir da adaptação de um texto de Eduardo Galeano por César Ribeiro, não é uma peça leve e nem relaxante. Em alguns momentos, ela gera emoções fortes em quem está assistindo, mas é absolutamente necessária, principalmente se nós pensarmos no poder pedagógico do teatro. Variando de caráter documental a poético, o espetáculo apresenta toda a profundidade do que foram esses anos de regimes ditatoriais por toda a América Latina do século XX.

Além do texto, que é uma profusão de fatos que nos deixam indignados, a gente vai acompanhando com a peça os horrores que foram esses governos e vamos nos emocionando, nos colocando no lugar das vítimas, de suas famílias. Além de toda essa carga de natureza textual, a estética da peça nos empurra para esse lugar de indignação, de sentir a dor das histórias contadas. Logo na beira do palco tem uma vala cheia de falsos esqueletos; o cenário é escuro, a iluminação é baixa, os atores todos vestidos de preto, com um rosto pintado de branco, como uma máscara, mas a forma como os olhos são pintados e o todo formam uma estética que nos remete a figuras como se fossem de pessoas que já tivessem morrido e que estão com a alma em sofrimento, contando relatos. É como se todo aquele cenário fosse uma espécie de submundo espiritual, de pessoas que ainda estão em sofrimento por causa do que passaram. É tudo muito intenso, mas de uma intensidade sofisticada. A figurinista Telumi Hellen define o resultado do seu trabalho da seguinte forma: “Plastificação, impermeabilização, sofisticação mascarada contida de vários movimentos como rock, punk, heavy metal e HQ, mixados nos personagens representados e apresentados... Androgenia, uniformização, a sombra por baixo da escuridão, morte em vida... ou... vida morte... Harners, sadomasoquismo enrustido... transformado na joalheria do poder...”

A peça passeia pela ditadura brasileira, passa pela ditadura argentina e por outros contextos ditatoriais, inclusive trazendo a ditadura da Guatemala, que não é tão lembrada atualmente. Um verdadeiro passeio pelas profundezas dos traumas ainda não devidamente cuidados da América Latina.

Uma Breve Recapitulação de Algumas Ditaduras na América Latina

Na América Latina, o período da Guerra Fria foi marcado por um contexto político tenso. O mundo estava imerso em um cenário conturbado delimitado pela cortina de ferro, onde de um lado tínhamos os Estados Unidos e do outro lado a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o sul global foi afetado por essas tensões. América Latina e África sentiram profundamente essa disputa entre esses dois lados, sendo usados como "peões" em um tabuleiro. Nessa época, os Estados Unidos buscavam influenciar a região, especialmente através da oposição aos movimentos de esquerda. Os Estados Unidos apoiaram os regimes ditatoriais na América Latina. O investimento estadunidense nesses regimes aumentou de forma significativa após Cuba se declarar socialista em 1961, alimentando o receio de que outros países latino-americanos seguissem o exemplo cubano. 

Esses regimes ditatoriais impuseram uma repressão severa e enfrentaram resistência, inclusive por grupos de luta armada. Além disso, a cooperação entre as ditaduras latino-americanas, conhecida como Operação Condor, fortaleceu ainda mais a repressão, tornando difícil a fuga de opositores entre os países envolvidos.

Em países específicos, como Paraguai, Uruguai, Chile e Argentina, as ditaduras militares deixaram marcas profundas. No Paraguai, o regime personalista de Alfredo Stroessner, general que permaneceu no poder durante todo o período (1954-1989), perdurou por décadas, caracterizado por uma repressão implacável. No Uruguai, a dissolução do Congresso pelo presidente civil com o apoio dos militares e dos EUA resultou em uma ditadura marcada pela repressão aos guerrilheiros Tupamaros (1973-1985). No Chile, o golpe militar liderado por Augusto Pinochet, após a eleição de Salvador Allende, que lutava pela diminuição da desigualdade social e foi morto no processo de implementação do golpe, culminou em uma violenta ditadura (1973-1990). Na Argentina, os militares implantaram a ditadura através do Processo de Reorganização Nacional (1976-1983), marcado pela repressão aos movimentos de esquerda, destacando-se o movimento das Mães da Praça de Maio. 

A transição para a democracia em alguns países latino-americanos ainda acontece, por mais que não vivam uma ditadura e possuam suas constituições e processos eleitorais. Ainda assim, existe muita resistência à democracia e perseguição às minorias, sendo necessário um trabalho constante de vigilância para que não cheguem ao poder grupos que tentem sufocar os direitos sociais conquistados.

Esses episódios da história latino-americana durante a Guerra Fria destacam as complexidades e os desafios enfrentados pela região na busca pela democracia e pelos Direitos Humanos. Uma busca que persiste e a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais se torna importante para que as autoridades compreendam que o povo é o verdadeiro titular do poder.

Serviço

Dias e Noites de Amor e de Guerra

De 16 de março a 7 de abril de 2024, com sessões às quintas e às sextas, às 20h; aos sábados, às 16h e às 20h; e aos domingos, às 18h. SESC 24 de Maio - São Paulo (SP) 

Texto: Eduardo Galeano

Direção e adaptação: Cesar Ribeiro

*Este artigo não relfete, necessariamente, a opinião da Fórum