CINEMA

Mulheres no Tribunal: Anatomia de uma queda e Saint Omer – Por Filippo Pitanga

Como estreias recentes no cinema e no streaming, dirigidas por mulheres, podem debater uma justiça que não é igual para todos

Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Estreou nos cinemas esta semana o laureado longa-metragem "Anatomia de uma queda" de Justine Trier, com interpretação cirurgicamente precisa da diva Sandra Hüller, recém-indicado a 5 estatuetas do Oscar (filme, diretora, atriz, roteiro original e montagem). E, neste presente texto, iremos fazer uma analogia sobre a estética e a ética de filmes de tribunais que abordam mulheres na berlinda como acusadas de um crime. Como o cinema retrata estas personagens e como a sociedade as enxerga, mesmo sob inúmeras camadas de patriarcado arraigadas em todos nós? Para tanto, faremos um paralelo exemplificando o assunto a partir da estreia supracitada e do lançamento nos streamings de outro grande sucesso recente, o filme "Saint Omer", de Alice Diop, com a revelação total Guslagie Malanda e seu olhar felino, misterioso e sofrido ao mesmo tempo.

Estes foram dois dos melhores filmes com protagonismo feminino nos últimos tempos, e também foram alguns dos que melhor debateram questões de gênero e de injustiças sociais nas estruturas de poder. Ambos renovando a estética de tribunal. Ambos com perspectivas centrais sobre mulheres e sobre interseccionalidade, tanto queer quanto étnico-racial, respectivamente: uma personagem bissexual e fora de seu país, de origem alemã, ex-residente britânica e processada na França (coisas que serão usadas culturalmente contra ela no julgamento por homicídio); a outra, negra e imigrante na França, advinda do Senegal, e numa relação interracial com disparidade de classe e geracional (o que também será usado contra ela no julgamento por homicídio).

Ambos filmes dirigidos por mulheres e multipremiados internacionalmente. O primeiro, indicado ao Oscar 2024 e ganhador da Palma de Ouro 2023 em Cannes (apenas a terceira mulher a ganhar esta honraria), recém-estreado no circuito comercial brasileiro, e tendo pré-estreiado em SP na Mostra de SP e em outros estados no Festival Varilux de Cinema Francês; e, o segundo, já disponível online no Telecine pela Globoplay, e ganhador do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza 2022, além de inúmeros troféus de filme de estreia (primeiro longa-metragem da cineasta), por seu extremo domínio da realização.

Divulgação

Ambos possuem muitas sintonias, como a literatura como metalinguagem: A primeira protagonista é acusada de premeditar intenções e métodos (com quais é suspeita de matar seu marido) nos livros escritos por ela, levantando o questionamento clássico se devemos separar ou não autoria de obra e o limiar entre ficção e realidade, intenção e concretização... A segunda protagonista viaja a Saint Omer pra escrever sobre o julgamento de uma Medeia moderna, mas vai se projetando de modo inverso, pois vai se tornando a obra por verossimilhança e sendo assombrada por ela nos reflexos de seus próprios fantasmas inerentes.

Ambas cineastas utilizam cortes secos, sem melismas, sem trilha excessiva, apenas a única música objeto do devaneio psicológico que é usado em circularidade nos dois filmes, como um looping no divã de uma sessão de psicanálise. A circularidade também está na montagem, circundando o tribunal como num palco, dando a vez pra cada agente, julgador, promotor, defesa, testemunhas, cada qual no seu quadro, sem nunca invadir o outro, mas cujo contraplano não se dá defronte uns aos outros, e sim dando lugar aos meridianos do círculo deste tribunal. Cada envolvido tendo sua vez de se erguer no palco para sua "interpretação" (palavra, aqui, com duplo sentido).

A diferença entre os dois filmes, para além do conteúdo de suas interseccionalidades, está na forma com que usam essas estratégias. A metalinguagem da literatura na primeira é pelo romance, a ficção; a da segunda é pela filosofia e a autoficção. O mito grego da primeira está mais próximo de uma Jocasta, no qual seu filho é quem talvez bote a pedra final no túmulo do pai, ao caber a ele decidir qual narrativa irá refabular da morte do patriarca, se não quiser ficar órfão de mãe também. Enquanto a segunda, em coprotagonismo (pois uma é escritora e a outra é ré) assume de plano o mito de Medeia expresso no discurso para ambas personagens, julgando muito mais a sociedade que leva a mãe a tal ponto do que a própria.

As diferenças continuam, como o fato de que o primeiro usa do sarcasmo, até na música escolhida como pivô da hora da morte (“Pimp” de 50 Cent) e repetida num thriller dramático, sem lágrimas, bem teuto-francês; enquanto o segundo utiliza de trilha original fantasiosa apenas quando os poucos respiros afora do tribunal são cortados por pesadelos no início, no meio e no final, com mais rara ainda exceção do uso extradiegético de uma Nina Simone (Little girl blue), que alude ao conteúdo do realismo maravilhoso de feitiçaria advinda do apagamento das raízes culturais senegalesas das personagens imigrantes.

Em meio ao avanço de protagonismos femininos, vale lembrarmos de grandes filmes de tribunal com mulheres em personagens marcantes, como “Testemunha de Acusação” (1957, disponível na AppleTv), de Billy Wilder, com Marlene Dietrich em estado de graça, a dominar a situação e o julgamento, mesmo que não fosse ainda a principal acusada nem aquela com maior tempo de tela (compartilhado com Tyrone Power e Charles Laughton). Ou “Amor Maldito” (1984, disponível no youtube), de Adélia Sampaio, primeiro longa-metragem de ficção dirigido por uma cineasta negra a ter sido lançado em circuito comercial nos cinemas brasileiros, inspirado em fatos reais (mesmo que a cartela inicial diga que não, para fugir à censura da época), e cuja protagonista teria sido acusada de homicídio na época pelo suicídio de sua ex-companheira apenas por homofobia à sua sexualidade. Todos estes cults já colocavam a mulher em questão a partir do julgamento social, mas, atualizados por debates mais recentes de representatividade atrás das telas, e não mais apenas de representação na frente das telas, como do inesquecível “Gett: O Processo de Viviane Amsalem” (2014, disponível na Amazon Prime), da saudosa Ronit Elkabetz e seu irmão mais novo Shlomi Elkabetz, que julgava uma jovem mulher apenas por querer se divorciar, precisamos mais do que nunca sermos “os primeiros a atirar a primeira pedra”. Precisamos perguntar o que a sociedade possui igualmente responsabilidade perante esses julgamentos sociais.

Divulgação

“Anatomia de uma Queda” e “Saint Omer” colocam o tribunal dentro da mente do espectador, demandando com que pergunte a si mesmo quais são suas noções pré-concebidas, e com qual base corre tão rápido para ser o primeiro a julgar terceiros antes de julgar a si mesmo, em suas ações e omissões, em sua imperícia e negligência ao próximo. O quanto somos capazes de julgar estas mulheres em nossas cabeças e talvez nem sequer por um instante parar para pensar se aquilo pode estar sendo manipulado ou mesmo plantado contra elas...? Vale dizer que ambos terminam com mais perguntas do que respostas, justamente para a plateia preencher – como se a protagonista de “Anatomia de uma Queda” matou de fato o marido ou não, ou se foi suicídio ou acidente, e também fica a dúvida se o filho dela acreditou nela ou não, ou se apenas não queria ficar órfão dos dois pais. Caso queiram saber até mais sobre isso, procurem a entrevista que a própria diretora deu sobre o que ela acha do final quando escreveu o roteiro com Arthur Harari (pois ela tinha uma ideia bastante nítida, mesmo deixando em aberto).

E cabe também se perguntar, em relação a “Saint Omer” se o mesmíssimo processo do filme atrairia tanta indignação se tivesse sido cometido por uma mulher branca..., pois a interseccionalidade aqui pesa muito mais sobre os ombros da mulher negra. Seja pelas relações descritas ao longo da projeção, como o companheiro desta a escondia de seus próprios familiares e amizades; bem como da relação dela própria com o país, como imigrante, o que já ocasionava profunda perda cultural e dissociação de identidade, devido a tudo o que é imposto em territórios estrangeiros hegemônicos como a França. Para muito além das protagonistas, seja a escritora, seja a ré, cada uma em seu modo de vida (que a Europa poderia rotular como modelo de sucesso ou de fracasso na assimilação histórica), estavam no tribunal sendo julgadas ali várias coisas, como a xenofobia, o machismo, o racismo, o classismo, a intolerância religiosa e muito mais....

Ambos filmes demonstram que nem a jornada da heroína é capaz de redimir o sacrifício social destas personagens, pois, independentemente de serem inocentadas ou não no desfecho, o estigma as perseguirá até o fim, só cabendo como única escapatória a refabulação de si, mesmo e justamente por causa dos holofotes da violência, para não se permitirem apagar ou invisibilizar nunca mais outra vez.