OPINIÃO

Daniel Alves e o "Habeas Corpus Christi" - Por Pastor Zé Barbosa Jr

Relatos de meu estranhamento do uso da fé para "diminuir" penas por crimes hediondos

Daniel Alves e o "Habeas Corpus Christi".Daniel Alves sentado confortavelmente em um jatinhoCréditos: Reprodução/Instagram/@danialves
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Não é novidade o fato de muita gente que apronta todas na vida, comete crimes hediondos e terríveis como assassinatos, estupros e outros mais e, na cadeia, se "converte" e passa de vilão a santo em "dois cliques". Bezerra da Silva, em "Sequestraram minha sogra" dá voz ao sequestrador que se arrependeu do rapto da sogra do cantante e diz: "vou me entregar a polícia e quando sair serei mais um pastor." Isso no final dos anos 80.

Lembro-me bem da febre que havia nos anos 80 de "testemunhos" que lotavam igrejas e auditórios para ouvir a saga dos pregadores na linha do "quanto pior, melhor", ou seja, quanto mais podre fosse o passado do sujeito, mais "forte" era o "testemunho" ou como diziam alguns, “tristemunhos".

Quem viveu essa era dos megaeventos para ouvir as histórias sempre escabrosas jamais esquece. Ainda dou risadas quando lembro do relato da “ex-capa da Playboy”, que lotava igrejas de adolescentes que tinham sonhos nem tão santos depois do culto, já que durante a pregação, ela mostrava algumas fotos (não as mais explícitas, óbvio) da “vida anterior”. Como se a mente de adolescentes precisasse do todo para imaginar as partes. E o pior era ouvir no domingo pregações contra a masturbação, mas isso é tema para outro texto, que fale sobre a repressão sexual nas igrejas.

Dois temas eram sempre preponderantes nessas sessões públicas de testemunhos: um “famoso” que, caindo na desgraça, encontrava a “luz” ou bandidos que, quanto mais perversidades tivessem feito, mais público traziam para os cultos e congressos que os apresentassem. Ainda recordo o relato do “ex-diabo louro” (o curioso é que havia dois pregadores com essa mesma história), e de um outro que sempre me causava questionamentos, pois o testemunho dele, que constava até de assassinatos, era de que “Deus fez desaparecer os processos contra ele e então ele foi liberto”. Isso mesmo: o cara confessava os crimes no “testemunho”, mas como os processos haviam “desaparecido” por intervenção divina, ele vivia por aí pregando.

Porém ninguém se comparava ao lendário “Tio Chico”, que em seu relato dizia que desde bebê foi “diagnosticado” como médium, com 10 anos já era pai-de-santo, depois foi “promovido” a babaorixá, mago e bruxo. Aliás esse era o seu chamariz: “o ex-bruxo Tio Chico, que foi bruxo da Xuxa”. Segundo ele, aos 10 anos recebia 385 entidades e 12 mil falanges de pomba-giras. Ainda confessava que havia matado 40 pessoas a bala a mando de políticos, ex-pistoleiro, ex-atirador de elite da Polícia Federal, além de ter engravidado a irmã e ter dado dois tiros de escopeta num filho para atingir o grau máximo da maçonaria, sem contar o fato de ter feito sexo com a própria mãe ainda criança. E desfilava mais histórias absurdas, abjetas e totalmente mentirosas e preconceituosas, mas que chegava a lotar ginásios para ouvir. E saía de lá sem ser preso.

Mas alguém pode me perguntar: “você, como pastor, não crê que Deus possa mudar a vida de pessoas?” Claro que creio, mas também creio que essa “mudança” deve vir acompanhada de arrependimento, CONFISSÃO e, quando diante de um fato que é constituído como crime perante a lei, cumprimento da pena. E mais que isso, uma demonstração clara de “mudança de vida” que não é provada cantando música gospel ou pregando em qualquer igreja, mas exatamente no reconhecimento do crime e não no uso da religiosidade como ferramenta para “apagar o passado”, como se não tivesse acontecido.

Tudo isso eu digo para que entendam o que está envolvido no episódio “gospel” de Daniel Alves. Claro que muita gente só tem esse encontro com o sagrado em momentos de total desespero e eu não nego que isso possa ter acontecido. Mas considero sempre estranho a exposição da “conversão” como fator de aplacamento da ira divina ou da sede de justiça social, como no caso do ex-atleta. O aparecimento cantando músicas evangélicas sem nenhuma demonstração de arrependimento pelo que fez e, aparentemente, mostrando ares de “bom-moço” que negariam o próprio fato só acontece porque, antes, há toda uma história de que, aparecendo convertido, encontra lugar de aceitação e, mais ainda, celebração por parte de alguns.

Celebração essa construída, como já mostrei, durante tempos e, num Brasil cada vez mais dado a esse tipo de pensamento, a “saída evangélica” é muito bem-vinda tanto para os que, honestamente a procuram, quanto para canalhas e bandidos que, muito bem amparados por assessorias de imprensa e influenciadores, é capaz de usar a fé simples das pessoas como uma espécie de “habeas corpus christi”, que lhe dá o direito de plena liberdade e desfaçatez desde que “cumpra os requisitos” do mercado gospel, cada vez mais embalado por pilantras e empresários da fé.

Não cabe a mim julgar a fé ou a não fé de ninguém, mas gritam, de forma absurda, as palavras de João Batista narradas no Evangelho segundo São Mateus: "Raça de víboras! Quem lhes deu a ideia de fugir da ira que se aproxima? Deem fruto que mostre o arrependimento!” Enquanto estupradores, assassinos, bandidos, golpistas utilizarem do discurso religioso, sem que isso implique falar a verdade, assumir os próprios erros e lutar por justiça, não me convencerão de que são apenas, como diria o próprio Jesus: “sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundícia.”

Quem tem ouvidos, ouça.

* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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