"Emilia Pérez", de Jacques Audiard, é realmente um filme ímpar*. Não por ser dirigida por um francês predominantemente em língua hispânica e elenco internacional com estrelas norte-americanas. Nem por ser um musical no meio da máfia mexicana, ou por incluir a transição de gênero como um dos principais temas. O que faz esta obra tão única é ser imperfeita, cheia de arestas, e ao mesmo tempo apaixonada em enorme entrega de sua essência, sem vergonha nenhuma de ser apoteótica: Uma ode às influências latino-americanas desde o melodrama da novela mexicana à trilha sonora recheada de ritmos próprios (como o chicano rap, subgênero do gangsta), e o exagero dramatúrgico necessário para impactar. Não há como sair indiferente.
O longa-metragem chega no 26° Festival do Rio egresso do Festival de Cannes deste ano com o Prêmio do Júri de melhor filme (espécie de medalha de bronze, a mesma que o nosso "Bacurau" ganhou em 2019) e de melhor atriz, que foi compartilhado com suas 4 atrizes principais (não sendo, este, um ato inédito, pois o prêmio já foi dividido antes, como em "Volver" de Almodóvar em 2006). As quatro artistas que dividiram a láurea, Zoë Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz e Karla Sofía Gascón (esta última a personagem-título) fizeram, sim, história em Cannes, mas por outra razão, também ligada ao tema já supracitado da trama, que é a primeira atriz trans ter ganhado tal reconhecimento no Festival da Riviera francesa. E isso não é à toa, pois Gascón divide o protagonismo com Saldaña, inclusive nas músicas (alguns dos melhores duetos), numa química irresistível, superior à toda a carreira em Hollywood desta última (lembremos que ela possui real ascendência porto-riquenha e dominicana, com poucas chances de ter usado isso na carreira norte-americana). Se a primeira metade da projeção conta com mais tempo de tela desta, na segunda é quando a personagem Emilia Pérez nasce em todo o seu esplendor, num contraste poderoso à caracterização de prostéticos, gestos e voz anterior.
Eis aí que surge o diferencial: há um cuidado muito grande, provavelmente da pesquisa e consultoria do filme com o capitalismo gore (apesar de o tema da máfia imigrante etnicorracial sempre estar no trabalho de Audiard), com prováveis referências de nomes como a filósofa/socióloga Sayak Valencia, cujo estudo propõe resistência à sociedade do narcotráfico através do feminismo. Com isso, a transição de gênero se torna a oportunidade de uma segunda chance, e a violência da política mexicana corrupta vai dando lugar a camadas outrora nas sombras, como o desaparecimento e execução de tantos inocentes tragados pelo conflito eterno.
A parte musical é um caso à parte. Não é um filme todo cantado, havendo diálogos pungentes, mas também um bom número de duetos, coros e dança; como acabou sendo a surpresa intencionalmente anticlimática de "Coringa: Delírio a Dois". Mas a intenção, de fato, é exprimir em canção aquilo que não conseguimos dizer no dia a dia. As apresentações se dividem em grandes números e outros opostos, totalmente intimistas, como confissões do âmago. Há pelo menos dois números exuberantes pra ficar na história do gênero, o inicial nas ruas, em meio ao povo, e o segundo já no ato seguinte, numa gala para angariar fundos. São diametralmente inversos em tudo, em ética, moral e na forma de filmar, mas complementares na principal crítica que a obra faz entre a o poder e a expiação, o individualismo e o coletivo: O primeiro prima pelo balé corporal em uníssono, o segundo pela fotografia com maneirismos de câmera arrojados, como efeitos chicote e um frenesi de zoom e push in.
A alternância entre as canções mais naturais, na própria mise-en-place das locações, e as que abstraem da realidade e mergulham em cenários irreais ou galpões vazios, como um quadro negro, é bem encaixada, e são as íntimas que mais elevam Gascón (apesar de ter seu momento Evita Perón). Já Saldaña extrai ouro inesperado da ambição de sua personagem, inclusive na afinação (não esperem uma cantora pop, e sim uma sólida atuação no nível Broadway à la "Hamilton"), sem falar em seu espanhol, perfeito, bem diferente da atriz e cantora Selena Gomez, que interpreta uma jovem mãe de duas crianças, papel ainda raro em sua carreira, e cuja língua nativa soa colonizada (aparentemente de forma intencional pelo diretor, pois até seus números musicais demoram a acontecer, como se não desejasse entregar facilmente a faceta mais esperada pelos fãs da ex-teen Disney, cuja personagem vive pedindo para ir morar com a irmã nos EUA).
Vale resgatar o fato citado no início do texto das arestas mais rústicas e intencionais do roteiro, pois toda ousadia naturalmente vem acompanhada de riscos, que fizeram valer à pena. Algumas coisas ficam subentendidas, como a manutenção de poder e dinheiro mesmo após a mudança de identidade, assim como o regresso pro México, como afirmação territorial de suas raízes (aliás, vai ser bem interessante ver norte-americanos indo assistir com seu preconceito linguístico, sendo que por volta de 20% de sua população hoje é hispânica). É o que torna a aposta mais interessante.
Exatamente por essa razão, mesmo viajando por alguns países ao longo da narrativa, e com pouquíssimas falas em inglês, mas se passando predominantemente no México, este novo trabalho do cineasta Jacques Audiard é o representante da França ao Oscar de melhor filme internacional, por ser a nacionalidade de seu diretor e de principal parte da produção. O mais interessante disso, para além do intercâmbio cultural, é a decolonização de certos valores esperados na tela. A violência previsível de histórias sobre formas de dominação política pelo narcotráfico em nosso continente, da mesma forma que toda resistência latinoamericana se deu através da reapropriação de nossas identidades afora do poder dos opressores, aqui também vai usar do sincretismo e da fé para encontrar brechas e fissuras na normatividade padrão, tipo Saulo que se torna Paulo de Tarso, mas, aqui, Emilia Pérez.
*A princípio, o filme ainda reprisa no Festival do Rio na sexta dia 11/10 às 21h15 no Estação Net Botafogo, e depois apenas estreia no Brasil em fevereiro de 2025, antes do Oscar. Imperdível.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.