OPINIÃO

A declaração de pobreza do trabalhador para o TST e as batatas de Quincas Borba

O Tribunal Superior do Trabalho formou maioria no sentido de que a declaração de pobreza assinada pela parte (trabalhadora), sob as penas da lei, é válida para comprovar a insuficiência de recursos para ter acesso à Justiça gratuita, desde que não haja prova em contrário

Homem em situação de rua no Rio de Janeiro.Créditos: Fernando Frazão/Agência Brasil
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O Tribunal Superior do Trabalho (TST), em sua composição plena nesta segunda-feira (14/10/2024), formou maioria no sentido de que a declaração de pobreza assinada pela parte (trabalhadora), sob as penas da lei, é válida para comprovar a insuficiência de recursos para ter acesso à Justiça gratuita, desde que não haja prova em contrário.

A questão submetida à julgamento foi a seguinte: Há direito público subjetivo à concessão de gratuidade de justiça à parte que, percebendo salário igual ou superior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (atualmente, isso equivaleria a R$ 3,1 mil), declara pobreza e não comprova a sua hipossuficiência no processo? Se não, em que circunstâncias e sob quais parâmetros a hipossuficiência pode ser comprovada nos autos? O cerne da discussão era definir o que constitui prova para essa finalidade. (Disponível aqui, acesso aos 23/10/2024).

Trocando em miúdos, está sob julgamento quais os critérios de concessão da gratuidade da Justiça ao trabalhador após a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17). Essa legislação, a pretexto de majorar o nível de empregabilidade (até mesmo o Ministro Lelio Bentes, enquanto Presidente do TST, expôs de maneira assertiva que a Reforma Trabalhista não entregou o que prometeu), definhou a episteme das relações trabalhistas a ponto de inserir o capital no mesmo patamar protetivo do trabalho. Paralelas que se cruzam? Dimensões contrapostas que se simetrizam no contexto social?

Justo o capital, o ornitorrinco apresentado em uma simbólica analogia por Francisco de Oliveira em “A economia brasileira: crítica à razão dualista”, publicado originalmente via ensaio em 1972. Desembocamos, então, na redução da luta de classes por demandas e não através da experiência assumida nas ações coletivas e na formação de uma consciência duradoura e permanente, da forma que nos ensina E. P. Thompson em “A formação da classe operária inglesa” em seus 3 volumes. Reflexo destrutivo, sem dúvida, do elemento Reforma Trabalhista e do conjunto neoliberalismo.

Nesse caso da gratuidade de Justiça, existe uma espécie de duplicidade onerante. A de ir buscar seus direitos (não pagos pela parte patronal) na Justiça e a comprovação de ou ter dinheiro para comer ou para requerer suas garantias sociais fundamentais. Quer dizer, nesse jogo do Direito heterônomo e formal, o Estado dá com uma mão e retira com a outra. Me faz lembrar Vargas e sua “benevolência” com o aparato sindical e os direitos individuais na CLT de 1943. Dá, mas quer o troco. E esse troco quase sempre é maior (em labor transformativo) do que o que foi dado. 

Marx chamaria de exploração da mais-valia pela venda da mercadoria força de trabalho. Ruy Mauro Marini de superexploração da força de trabalho pelo capital. Ystván Meszáros de reprodução metabólica antissocial do capital. Marilena Chauí de naturalização das desigualdades sociais via ideologia e do caráter autoritário da sociedade brasileira. O produto conclusivo é um só: a intensificação dos mecanismos de exploração do trabalho pelo capital. Portanto, essa conversa do TST no julgamento em questão nada mais é do que capital x trabalho. 

Mas sempre foi assim, não é? Sim, sempre, o que mudam são os atores que falam pelo capital. Veja que já foi a burguesia industrial das Luzes, a burguesia consumista do projeto piloto do Welfare State no Brasil, e agora são os burgueses rentistas frutos da captura austera na dimensão objetiva (apropriação do mais-valor e do excedente social) quanto na dimensão subjetiva (racionalidade e lógica normativa com a corrosão do caráter do sujeito neoliberal).

E esse é o ponto para retornarmos à premissa deste texto que é a “validade” ou não da declaração de pobreza do trabalhador para ingressar na Justiça do Trabalho. O que chama mais atenção nos debates em julgamento do processo  IncJulgRREmbRep 277-83.2020.5.09.0084 no TST são as correntes nebulosas cujos conteúdos disparam ódio e dúvida sobre o trabalhador. 

E posso mencionar essas correntes de forma franca (quis brincar com a forma “franca” para relembrar o generalíssimo Francisco Franco Bahamonde na nefasta ditadura fascistizada espanhola entre 1936 e 1975). Reparem bem que em uma justificativa de voto vencido, há menção ao biólogo Garrett James Hardin, que escreveu “A tragédia dos comuns”, uma obra que difundiu a ideia de que as quantidades de espaços aptos à sobrevivência estariam escassas porque os bens comuns estavam sendo divididos. E isso levaria à miséria humana. Vamos lembrar que Garrett Hardin é listado pela Southern Poverty Law Center como um adepto do nacionalismo branco, com publicações “francamente” (de novo eu no recurso didático) racistas e etnonacionalistas. Pergunta: quem explora os bens comuns da humanidade? O capital ou o trabalho?

Para além, nesse mesmo voto há menção à teoria da Justiça como equidade de Rawls. John Rawls (1921 – 2022) foi um filósofo liberal e idealista adepto a uma concepção deontológica de que os cidadãos são livres e iguais. Sem dúvida, uma concepção de liberdade ainda estagnada na Declaração de Independência dos EUA (1776), na Revolução Francesa (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Baseado na cooperação social, Rawls, citado no voto vencido do TST, adota uma teoria com base na concepção do “bem”, no sendo de justiça e de um racionalismo abstrato para se chegar em uma equidade de oportunidade. Pergunta: na disputa do capital x trabalho quem é o bem e quem é o mal para Rawls e para o voto do TST? As pessoas seriam o meio para os fins de distribuição da riqueza?

 A árdua defesa da Reforma Trabalhista em sua literalidade foi uma tônica na condução do voto liberal. Sugestiona-se a interpretação fria e crua da norma. Ah, e também foi citado Cass Sunstein no voto. Um advogado e professor norte-americano que navega em uma teoria política conservadora e minimalista que incute ao trabalhador a pecha de abusador de direito ao acessar a Justiça para garantir o cumprimento mandamental da Constituição Federal. 

Além disso, a obra de Cass Sunstein imputa ao Judiciário o papel de mero carimbador do que a lei denota, sem margem para interpretações finalísticas ou teleológicas. Não poderia deixar de mencionar que Sunstein se baseou em Edmund Burke, teórico irlandês e notório conservador religioso do século XVIII. Sua obra se arvorou na crítica à Revolução Francesa ao considerá-la prematura e violadora de costumes e tradições. 

Essa banda de votos cuja narrativa visa a um tratamento de fechar as portas ao trabalhador é destacada na expansão política da Justiça (ESCRIVÃO FILHO, Antonio Sergio. Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017). Expansão essa de forma enviesada no sentido de o próprio Poder Judiciário funcionar não como ativador social das garantias fundamentais (acesso à Justiça, art. 5º, XXXV, CF/88 e justiça gratuita, art. 5º, LXXIV, CF/88), mas como modelo e parâmetro de controle judicial sobre a sociedade.

Na mesma linhagem, exorta uma disputa inglória em que jamais haverá vencedores e, se houver, ficarão apenas com as batatas. Não haverá glória porque sobreviverão apenas os “vencedores” e a missão constitucional terá falhado. Quando Raymundo Faoro escreve a magnífica obra “Os Donos do Poder” sobre a formação do patronato político português e brasileiro, ecoa em nossos tempos como se passado e presente se fundissem num amargo momento histórico.

Pela leitura de votos como esse, as estruturas e bases sociais do país padecem pelo mesmo motivo que Rubião padeceu na obra realista Machadiana do final do século XIX. Ele teve a crença ingênua em buscar a vida moderna na grande cidade (analogicamente em buscar direitos na Justiça), ao passo que, hoje, vemos um desfile de “máscaras” que ostentam desejos entreguistas e hedonistas, na contramão da igualdade social, simbolizados nas narrativas do capital e em desfavor da massa populacional desnutrida. Desnutrida de comida e de fervor político contra os desmandos.

Já que estamos falando do realismo de Machado de Assis, este apresenta uma única diferença quando escreve Quincas Borba e o que enxergamos na leitura de mundo de hoje pelo voto aqui discutido. Lá há romance, nem que seja no pano de fundo. Aqui, há condenação por buscar se expressar detentor de direitos num desate do Judiciário, justamente aquele que poderia ser o redentor na centralidade e regulação do trabalho. 

Diante dos vários posicionamentos quanto aos desdobramentos do entendimento proclamado no julgamento, a sessão do TST decidiu que concluirá o julgamento com a tese vencedora na sessão do Tribunal Pleno do dia 25/11. Pergunta: sobrarão, pelo menos, as batatas para matar a fome dos trabalhadores?