A frase não saiu à toa. Foi pensada e repetida. Escrita e rabiscada em guardanapo.
“Só os infelizes são pontuais”.
Soaria melhor se falasse ao contrário?
“A pontualidade é a marca dos infelizes” ou ainda “O atraso é a comprovação da felicidade.”
Hoje é difícil apontar qual das declarações é mais despropositada, porém, em 1987, na mesa daquela pizzaria em Bauru, no Velho Oeste Paulista, ele teve a certeza: “Só os infelizes são pontuais” era uma potente frase de efeito.
O jovem forasteiro esperava a convidada há três chopps e dois cigarros. Era a noite do primeiro encontro.
A frase não só ia impressionar como aliviaria um possível constrangimento da colega atrasada em meia hora. Essa era a estratégia do filósofo de meia pataca.
Estava de costas pra porta e sentiu a presença dela antes mesmo da entrada. Em décimos de segundo, o perfume doce invadiu o salão, os saltos finos espetaram o chão de madeira e junto com eles um tilintar de pulseiras acompanhava o balanço dos quadris largos e fortes. A moça vistosa enfim chegara.
O rapaz se levantou, puxou a cadeira, gesto ainda comum naqueles tempos. Ela sentou com a perna cruzada e a saia vermelha subiu alguns centímetros.
Ao ouvir a frase ensaiada, a moça colocou o cabelo atrás da orelha e entrou no assunto.
- Nunca tinha pensado nisso, me explica melhor.
- Ah, a pessoa que se atrasa é porque tem convites, amigos querendo contar novidades, está terminando de ler um livro, chegou de viagem. E tem mais, na hora de sair recebe um telefonema importante. Rotina agitada, entende?
- E o que não se atrasa?
- A pessoa pontual tem vida monótona e poucos amigos. Poxa, se você só tem aquele encontro na semana, não tem por que se atrasar. Entendeu a relação do tempo com a satisfação pessoal?
- Sei... (não muito confiante)
- Não falo isso por causa do nosso encontro, não. Eu também cheguei há pouco (mentiu).
A moça sorriu com a boa vontade dos otimistas e não quis contestar a tal teoria. A noite seguiu meio margherita, meio calabresa.
Saíram outras vezes, sempre como amigos. Dois jornalistas novatos, que depois de trabalhar na TV de Bauru, seguiram caminhos diferentes.
Dia desses, ele voltou à cidade. Reuniu amigos, escreveu dedicatórias e mostrou seu novo livro. Os antigos companheiros de redação divulgaram, a rádio fez entrevista, a TV deu chamada e o jornal publicou meia página.
Os imprevistos afastaram alguns veteranos da festa. Uma se gripou, outro saiu com o neto, um terceiro faria exame na manhã seguinte. Vieram os desconhecidos. Amigos de amigos que recomendaram, curiosos, uma escritora, estudantes de jornalismo.
O dono do bar encheu a geladeira, chamou o violeiro, o cozinheiro e quando a luz apagou eram três da manhã. Acabaram-se os livros e secaram as garrafas.
A volta pra São Paulo, marcada para o dia seguinte, foi adiada. Queria visitar as próprias memórias: a república de tantas festas, o bar do Hélio de contas penduradas, o calçadão do comércio popular, a emissora de TV da Bela Vista que lhe deu a primeira chance na reportagem.
É claro, que nesse tempo Bauru mudou e mudou muito, mas para ele a sensação é mais de 35 dias do que de 35 anos.
Relembra a noite passada. Entre cinquentões e sessentões viu alegria e entusiasmo. É verdade que os cabelos diminuíram, corpos se transformaram, mas a sensação foi de que ninguém liga pra isso. É como se exposta ao mesmo espaço de tempo a distância entre eles não mudasse, como numa longa escada rolante. Ombro a ombro, sem ver os anos passando ao lado.
Perambula sem pressa nem horário na tarde escaldante do velho oeste paulista, tal qual aquela moça sem compromisso com o relógio.
A moça atrasada e feliz de uma noite de 1987.
*Leitoras e leitores, vocês vão ter um merecido descanso em outubro, volto de férias em novembro. Um beijo já com saudade e até lá.
*Dedico esta crônica aos amigos e amigas maravilhosas de Bauru, em especial à Dulce Kernbeis.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.