O analfabeto geopolítico assiste diariamente aos poucos minutos dos noticiários internacionais ou lê algumas páginas dos jornais da grande imprensa e já se considera capaz de se posicionar sobre o complexo cenário da geopolítica contemporânea.
Ele prefere o imediatismo à reflexão. Formula suas opiniões e se mantém atualizado sobre o que acontece no mundo a partir das “análises” de articulistas “isentos”, como Demétrio Magnoli, Jorge Pontual ou Guga Chacra. Quando assiste a um vídeo de poucos minutos, em que um youtuber “refuta” todo o pensamento de Marx, o analfabeto geopolítico se sente com argumentos suficientes para “lacrar” nas redes sociais.
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Para o analfabeto geopolítico, os maniqueísmos midiáticos são suficientes para explicar os focos de tensão do mundo contemporâneo. Ele percebe as relações internacionais por meio de um raciocínio dicotômico, entre nós e eles (os diferentes). Os antagonismos entre Mundo Islâmico e Ocidente, que datam, pelo menos, ao período da expansão muçulmana no século VII, podem ser devidamente reduzidos a dicotomias como “civilização versus barbárie” ou “luzes versus obscurantismo”. Na América Latina, todos os presidentes de esquerda são “caudilhos”, “ditadores” e/ou “chegaram ao poder em eleições fraudadas”.
Ele também desconhece as divisões arbitrárias e as rivalidades étnicas criadas pelos europeus no continente africano. Consequentemente, a geopolítica da África é aquela presente em produções hollywoodianas, e os antagonismos entre diferentes grupos culturais africanos são causados por rivalidades seculares, que nada têm a ver com a interferência dos “civilizados” europeus. Do mesmo modo, a chamada “Questão Palestina” não se trata de disputas por territórios, seria um suposto ódio histórico entre judeus e muçulmanos.
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Para o analfabeto geopolítico, o complexo fenômeno do terrorismo internacional é percebido somente a partir de sua representação midiática, suas causas seriam meramente religiosas. Estes ataques são consequências da inveja que os fanáticos islamitas sentem de nós, civilizados ocidentais. “Contextualizar”, “relacionar”, “complexificar” e “refletir” são verbos definitivamente banidas do vocabulário do analfabeto geopolítico. Para ele, a presença imperialista no Oriente Médio tem por único e cândido objetivo levar a “democracia” aos déspotas árabes (diga-se de passagem, o analfabeto geopolítico não sabe diferenciar “muçulmano” de “árabe”).
Por que tanta convicção? Ele se informou por meio da Associated Press, da United Press International, da Agence France Press e da Reuters. Como poderosas agências internacionais de notícias, que dispõem de altas tecnologias da comunicação, originárias de países de Primeiro Mundo, poderiam se equivocar?
É fato: o analfabeto geopolítico também incorporou o chamado “complexo de vira-latas”: tudo o que vem das nações do Norte, com certeza, é melhor do que o nosso.
Nesse sentido, ele rejeita categoricamente a atual política externa do governo Lula, que privilegia as alianças Sul-Sul e elevou o Brasil a protagonista no cenário internacional. Bom era no tempo de Fernando Henrique Cardoso – quando entregávamos nossas riquezas para as grandes potências – ou mesmo no (obscuro) governo Bolsonaro – em que o Brasil se tornou pária geopolítico. Lembrando uma famosa frase de Chico Buarque, isso significa que devemos “falar grosso com Bolívia e Venezuela”; e “fino com Estados Unidos e Europa Ocidental”. Mais G7 e menos Brics!
O léxico geopolítico da grande mídia está na ponta da língua do analfabeto geopolítico. Palavras e expressões como “democracia”, “ditador”, “ajuda humanitária” ou “comunidade internacional”, por exemplo, são espécies de fetiches. Por si só, explicam uma determinada questão das relações internacionais. “Israel é a única democracia do Oriente Médio”, logo está justificado o genocídio do povo palestino. “Os Estados Unidos são a maior democracia do planeta”, consequentemente podem intervir em qualquer país mundo afora. Desse modo, para o analfabeto geopolítico, intervenções estadunidenses não são “ações militares”; tampouco podem ser qualificadas como “guerras”, mas “ajudas humanitárias”. Países como Iraque, Afeganistão ou Síria que o digam.
O fato de os dois únicos partidos estadunidenses eleitoralmente viáveis – Democrata e Republicano – serem praticamente iguais no sentido ideológico, fator que para qualquer sistema minimamente democrático, é algo extremamente negativo, consiste em mero detalhe para o analfabeto geopolítico. Por outro lado, todo governante que ofereça mínima resistência aos interesses de Washington é, automaticamente, um “ditador”. O fato de ele ter sido eleito ou não pelo voto popular é o que menos importa.
A expressão “comunidade internacional” – recurso metonímico que difunde os interesses estadunidenses como se fossem os interesses de todo o planeta – é um termômetro para os posicionamentos do analfabeto geopolítico que, via de regra, sofre de preguiça cognitiva. Parafraseando um conhecido dito popular, “aonde a comunidade internacional vai, o analfabeto geopolítico vai atrás”. Ele condena os programas nucleares do Irã e da Coreia do Norte, mas apoia incondicionalmente o programa nuclear que mais danos causou à humanidade: o estadunidense.
Falando em seletividade, o analfabeto geopolítico denuncia “violações de direitos humanos” em Cuba ou na Síria, mas quando assiste aos noticiários policialescos da mídia brasileira, afirma que direitos humanos aqui no Brasil é “direito dos manos” e argumento para “defender bandido”.
O analfabeto geopolítico se orgulha de sua ignorância. Não pode ver uma vergonha, que quer logo passar. Diferentemente do “analfabeto político” de Brecht, o “analfabeto geopolítico” não bate no peito e diz que odeia geopolítica. Pelo contrário, ele não se intimida em explicitar seus posicionamentos controversos.
O analfabeto geopolítico é o hater das redes sociais, o “idiota da aldeia” citado por Umberto Eco, o pobre de direita e o fantoche nas mãos dos poderosos. Trata-se do típico oprimido terceiro-mundista que adota a ideologia imperialista do opressor. Aliás, esta é, talvez, a principal função do analfabeto geopolítico: contribuir para que, no plano discursivo/simbólico, o processo de dominação de poucas nações sobre o restante do planeta siga seu curso sem maiores contratempos.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.