KOMBI

Duas Kombis no camarim batendo papo, batendo lata, por Carlos Castelo

A da esquerda, elétrica, ano 2023; a da direita, emplacada em 1968. Ambas esperam o registro das cenas que precederão a computação gráfica do comercial de TV

A Kombi.Créditos: Rawpixel
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As duas Kombi estão no camarim, junto ao set de filmagem. A da esquerda, elétrica, ano 2023; a da direita, emplacada em 1968. Ambas esperam o registro das cenas que precederão a computação gráfica do comercial de TV. O ambiente está coalhado de técnicos, fotógrafos, assistentes e maquinistas, preparando tudo para o momento em que o diretor gritar: “Roda!”. Como acontece com todos os atores nesse momento pré-ação cinematográfica, logo vem a velha conversa mole entre os utilitários:

— Demora a parada aqui, hein? Cacilda!

— É, mãe, eles precisam acertar tudo antes. Pra não dar chabu quando entrar a inteligência artificial e os algoritmos.

— Algoritmo, bicho? Isso aí no meu tempo só existia em aula de álgebra. Em propaganda, era impensável.

— Pois é, as coisas mudam, né?

— Será, menina?

— Ah, com certeza.

— Então me diz uma coisa: tu é o quê?

— Kombi, ué?

— E eu?

— Kombi.

— Mudou algum troço? Mudou?

— Bom, o nome é o mesmo. Mas olha pra mim. Virei um minibus techno.

— Micro-ônibus existe desde eu era criança lá em Porto Alegre. Só inventaram uns nomes, em inglês, mais sofistiquê.

— Não, não. Vamos ser honestas: agregaram uma pá de coisa, mã.

— Agregaram o quê, garota?

— Ixe, uma lista gigante. Pra começar, não poluo como a senhora. Se o motorista me parar pra recarregar numa tomada, recupero 80% da carga em meia hora. Sou 100% computadorizada. E tenho 204 cavalos.

— Mas pra que tanto cavalo? Você é artista ou é dona de haras?

— Ah, não começa com esse papinho de 68, vai?

— Sabe de uma coisa? Acho que te encheram desses badulaques pra aumentar teu preço, bicho.

— Afff!

— É isso aí. Porque Kombi é Kombi, né? Serve pra perua escolar, pra fazer carreto, acampar, não pra ir à Lua.

— Pô, não faz isso, por favor. Vamos curtir a filmagem, na boa.

— Eu tô numa boa. É fascinação, amor.

— Que bom.

- Aliás, disseram que iam trazer álcool pras Kombi e me abasteceram com gasolina. Sem um etanolzinho, não vou performar legal.

— Putz, não vê que não rola ficar pedindo álcool numa filmagem, cara? Pelo amor!

— Mas que caretice é essa? Ninguém se apresenta bebendo algoritmo!

— Olha, tem hora que me arrependo de ter topado passar por Kombi do teu lado, sabia?

— Por que, meu micro-ônibus tecnológico?

— Porque você, que ama o passado é que não vê, que o novo sempre vem.

— Que vem, vem. Tá passando bem aqui na minha frente agora.

— Então…

— Então que veio bem pior...

— Affff!

— É pau, é pedra, é o fim do caminho, bicho!