OPINIÃO

As escolas e o terror na sociedade cibernética

A violência produzida no brutal ato de um homem assassinar crianças com uma machadinha está conectada a estrutura precária, desigual, racista  e colonial dos modos de produzir educação no Brasil

Escola do Complexo da Maré coloca recado para policiais que sobrevoam a região.Créditos: Twitter
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A parte horrível dos Dois Minutos de Ódio não era o fato de as pessoas serem obrigadas a fingir. Pelo contrário, era impossível não se unir à multidão. Com trinta segundos, qualquer fingimento sempre se tornava desnecessário. Um êxtase abominável de medo e vingança, um desejo de matar, de torturar, de esmagar crânios com um martelo parecia fluir por todo o grupo como uma corrente elétrica. Contra a própria vontade, tal corrente convertia pessoas em lunáticas raivosas aos prantos. E, mesmo assim, a fúria das pessoas era uma emoção abstrata e sem direção, que podia ser alternada de um objeto a outro como apagar uma vela e acender outra. Orwell, George . 1984 (p. 18).

No dia 27 de março, um aluno de 13 anos esfaqueou professores e alunos em uma escola de São Paulo, e uma professora morreu. Outro caso aconteceu em uma creche na cidade de Blumenau (SC). Um homem de 25 anos invadiu uma creche com uma machadinha e matou quatro crianças com idade de 4 a 7 anos, no dia 5 de abril. Nos últimos 11 meses  foram registrados 5 ataques, sendo que desde 2011 o Brasil registra 11 ataques em escolas.

No entanto, os dois ataques mais recentes, em especial o de Blumenau, apresentam como principal apanágio um forte impulsionamento das plataformas digitais tanto de ameaças de novos ataques quanto de medo generalizado e divulgação de teorias supostamente científicas sobre suas causas, modos de prevenção ou de reação Da mesma forma que o filósofo Felix Guattari (1990) propõe uma articulação entre as três ecologias (o ambiente, as relações sociais e a subjetividade)proponho aqui que essa onda cibernética demanda uma estratégia de análise distinta do que há dez anos atrás pois tais eventos compõe um imbricamento sinérgico de três ecologias distintas e entrelaçadas: a violência, a escola e o governo dos algoritmos.

Ecologia 1: a escola

A educação em massa nos chamados países desenvolvidos é uma realidade muito anterior à brasileira e inclusive à similar portuguesa (Marcílio, 2005) e também, na chamada “era de ouro” da modernidade no pós-guerras mundiais do século XX, em geral a Europa investiu muito mais na formação de professores e na estrutura geral do sistema. No entanto, as transformações econômicas e culturais mais recentes, como aumento do desemprego, imigração e globalização tornaram a realidade mais complexa, e os alunos começam a colocar cada vez mais em cheque a função da escola, a questionar sua disciplina e a provocar conflitos. Depredações, ameaças a professores, bullying (agressividade e brigas entre os alunos), evasão escolar entram cada vez mais no cotidiano e passam a ser cada vez menos de uma minoria de alunos “desajustados”.

É importante trazer a ideia de que o sistema escolar faz parte das políticas públicas de um país, ou seja, co-emergem do contexto histórico, econômico e político. O Brasil apresenta uma história colonial marcada pela violência, o genocídio, a descontinuidade e um sistema democrático instábel e ainda não consolidado. Parece evidente que nossos problemas educacionais fazem parte 

A primeira política pedagógica da história das escolas no Brasil foi o método da palmatória e nosso país foi um dos últimos do mundo a adotar a educação como política pública pouco antes do regime militar de 1964, ou seja, nossas escolas foram gestadas em um clima repressor, disciplinar e industrial desta estrutura.

Com o fim do regime político de exceção compreendido entre 1964 e 1985 o Brasil encontrou uma relativa estabilidade política do primeiro governo FHC até a metade do mandato de Dilma Rousseff. A partir do ano de 2013  começa a operar no Brasil um novo sistema social e político marcado pelo conflito permanente, a bifurcação e, principalmente, a digitalização da esfera pública. Autores como Leticia Cesarino  (2023) e Rodrigo Nunes (2021) apresentam a digitalização e a plataformização como elementos fundamentais de contaminação do ambiente político e democrático, pelo aumento da instabilidade e da maleabilidade da difusão da informação e da produção de uma realidade social bifurcada. A Escola, a ciência e a educação em geral passaram de elementos centrais do debate para a periferia. Redes de fake news vieram para se sobreporem ao chamado conhecimento estruturado.

Desde o impeachment de Dilma  que as escolas brasileiras sofrem ataques de movimentos neoliberais, prefeituras e governos estaduais. Sucateamento, precariedade do trabalho dos professores e assédio ideológico do Escola sem Partido, movimento neoliberal autoritário que sob o pretexto de proteger os alunos de uma suposta propaganda partidária nas escolas criaram um ambiente conflagrado entre pais, alunos, professores e esfera pública.

No governo Michel Temer, como parte de um projeto chamado “Ponte para o futuro”, foi elaborado o Novo Ensino Médio, que propõe uma redução dos currículos escolares ao mínimo necessário para a formação do novo proletariado digital uberizado, que não é nada além de uma retomada do antigo projeto educacional colonial.

Ecologia 2: violências

A violência e suas distintas formas de mal-estar são expressões significantes do contemporâneo se expusermos a origem etimológica da palavra violência, que agora tende a se modificar e se subverter - bem como qualquer desenvolvimento da língua - em concepções de senso comum. Vemos que o vocábulo é inaugurado pelo prefixo ambivalente “vis” (em latim, “impulso vital”, “virilidade”, “intensidade”). E assim, na entrada do anfiteatro Flaviano, chamado séculos depois de “Coliseu”, estavam fixadas placas que diziam “violentia” referindo-se ao entretenimento preferido do Império: o espetáculo sangrento de cristãos, judeus ou condenados a se digladiarem até a morte ou serem estripados por leões famintos. E entre a sociedade patriarcal dos romanos, o incesto, o estupro e o cárcere privado de mulheres eram constituintes de cultura e, portanto, “socialmente aceitos”. Não somente tinham essa função em ser como um dos aspectos da violência, como eram legitimados na estrutura social. Percebemos, portanto, que violência, desde um passado milenar, está inscrita no registro simbólico sangrento e paradoxal, constituinte da cultura humana.

A violência explícita é apresentada no cinema a partir do que Zizek (2014) chama de violência subjetiva. O autor se refere que a mesma escandaliza o espectador e o confronta com outras categorias que, ele mesmo chama de violência simbólica ou sistêmica, pois não só denunciam que o cinema é apenas arte, ficção e roteiro, enquanto os extermínios e atrocidades de uma guerra de genocídio com interesses econômicos e políticos constituem a própria e assombrosa realidade. Para Zizek (2014),  a violência subjetiva é somente a parte mais visível de um triunvirato que inclui também dois tipos objetivos de violência: a primeira, uma violência que surge como um semblante, uma imagem aterrorizante pré-simbolizada, como quando experimentamos uma cena de ultraviolência no cinema.  Ainda que impressa no muro estruturante da linguagem humana do grande “outro do social”, há uma violência “simbólica” que é encarnada nos sujeitos e em seus enunciados, e essa violência não está em ação apenas nos casos explícitos de provocações e de relações de dominação social que nossas formas discursivas corriqueiras reproduzem. Há, no entanto, uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence ao arcabouço das coordenadas simbólicas enclausuradas à imposição de um certo universo de sentido. Isso é, precisamente, o que chamamos de violência “sistêmica”, que consiste nas consequências hediondas do funcionamento mecânico de nossos sistemas econômico e político.

A violência produzida no brutal ato de um homem assassinar crianças com uma machadinha está conectada a estrutura precária, desigual, racista  e colonial dos modos de produzir educação no Brasil que nem sempre provocam escândalo ou comoção ainda que representem séculos de injustiças, sofrimento e subdesenvolvimento. Além disso, na nova esfera pública digital seu poder destruidor pode ser amplificado tanto simbolicamente quanto na esfera da passagem ao ato. Na era da digitalização e da plataformização, os atos de violência estão acessíveis em grande escala pelos mediadores simbólicos das redes sociais e  sua energia atinge proporções planetárias em uma rede cibernética privada, monetarizada e sem controle. O Big Other.

Ecologia 3:A cibercultura do terror: do Big Brother ao Big Other

 GUERRA É PAZ 
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO 
IGNORÂNCIA É PODER
 Orwell, George . 1984 (p. 19)

As frases acima representam os aforismos fundamentais do “duplipensar”, ideologia do Big Brother de George Orwell, em uma sociedade onde não há leis,e  sim regulações impostas pelos próprios sistemas sociolingüísticos. O duplipensar, ainda que concebido em um governo autoritário, possibilita uma maleabilidade do pensamento implícita na convivência de opostos “Guerra é paz e liberdade é escravidão”

Nas bolhas cibernéticas identificadas como progressistas circulou uma postagem referente medidas defendidas pela direita para prevenção  dos ataques que dizia o seguinte:

“Ao invés de compartilhar ameaças às escolas e alarmar a todos, olhe a mochila antes de sair de casa, olhe as gavetas do seu filho, o celular dele, o histórico de pesquisas e conversas na internet. A privacidade dos filhos é LIMITADA (sic). A autoridade em casa é VOCÊ (sic), pai e mãe”

Em 1984, George Orwell projetou um futuro distópico de “Oceania” uma sociedade totalmente conectada e vigiada 24 horas por dia por uma grande entidade chamada “Big Brother”. Dos grandes espaços públicos à intimidade dos lares, as câmeras de vigilância operam 24 horas, e cada cidadão é carcereiro de si mesmo e de seu próximo desde as relações conjugais até “ligas antissexo” escritórios de produção da “novilíngua”, uma linguagem reduzida e mais eficiente para a obediência e a produção. Até mesmo o líder da oposição, o terrorista subversivo Goldsztein é uma invenção do sistema para manter massas mobilizadas, assim como uma eterna guerra contra um país vizinho.  Em Oceania toda a verdade é produzida para manter o sistema coeso e a população em constante conflito. Em horários determinados do dia, todos os cidadãos interrompiam seus afazeres para o dois minutos de ódio”, onde vociferavam ofensas e extravasam sentimentos diante de uma tela com o rosto do inimigo.

Alguma semelhança com o mundo de hoje? 

A postagem acima transcrita coloca um dos muitos paradoxos do “duplipensar” na atualidade do liberalismo econômico vs, autoritarismo, a ideia do estado mínimo e controle máximo. Em uma ideia aparentemente de “esquerda” de se opor à ideologia do porte de armas ou a entrada da polícia nas escolas, os disseminadores  da mensagem inconscientemente defendiam a ideologia do controle molecular descrito por Orwell, onde todos somos carcereiros de todos, os pais são representados como a autoridade máxima cujos filhos, por serem crianças, não possuem direito à privacidade ou a liberdade de expressão, uma microfísica do poder , nas palavras de Michel Foucault:

Governar um Estado significará portanto estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do pai de família " (1984, juro que a edição é coincidência, p.172)

Afinal, os supostos pais que devem vigiar seus filhos 24 horas são eles mesmos vigiados voluntariamente.

 Na obra de Orwell a Oceania é gerida por um imenso aparelho Estatal de coerção. Na sociedade digital atual, todos nós fomos adquirindo aparelhos cada vez mais conectados  em redes  que coletam nossos dados 24 horas por dia e os fazem circular por servidores espalhados ao redor do mundo, incluindo nossas localizações informadas por chips que nem os funcionários do Google sabem como desativar.

O uso das plataformas é aparentemente gratuito, mas além dos altos preços dos aparelhos e dos pacotes de dados, pagamos com informações preciosas sobre nossas vidas, dores, amores, e também com nossa sociedade. Os maiores líderes do mundo se comunicam pelo Twitter, o comércio de bens e serviços, os restaurantes, museus, enfim, toda esfera social está digitalizada e plataformizada. E tudo isso dentro de empresas privadas cujo faturamento rivaliza com o PIB dos maiores países do mundo. Fazendo uma alusão a Orwell, a pesquisadora Shoshana Zuboff chama esse governo cibernético de Big Other.

O Big Other assimilou as democracias e os conflitos políticos mundiais, todas agora estão inserido em grandes máquinas privadas.

Os atos de violência das escolas, cuja solução e prevenção deveriam ser objeto de reflexão e ação do Estado, da comunidade escolar e de toda sociedade civil organizada, agora são controlados pela esfera privada do Big Other e nossa principal estratégia de enfrentamento é resgatar a coisa pública, a democracia, usar a tecnologia como ferramenta, e não ser usado por ela.

Considerações finais

O problema analisado acima faz parte de um sistema complexo, ou seja, ele emerge de uma ecologia social, ambiental e subjetiva onde operam vários fatores. Proponho alguns itens que ajudam a buscar soluções:

  1. A própria ideia de solução única e heróica deve ser abandonada
  2. Cada pessoa, grupo ou instituição que lida com esses problemas possui saberes legítimos e pontos cegos, e é interessante a criação de espaços de debate, escuta, colaboração. Os problemas causados pelas redes frias cibernéticas devem ser enfrentados pelas redes quentes dos afetos
  3. É preciso abandonar a ideia de evolução inexorável, de que “esse é o novo mundo”, de que “o progresso tecnológico” é inevitável. Tais ideias revelam uma ideologia perversa implícita. Os povos originários do Brasil guardam consigo uma sabedoria milenar que possibilitou a manutenção de ecossistemas sustentáveis por séculos e séculos, e a chamada “modernidade’ representou genocício e desastres ambientais. Quem é o “primitivo” nesse contexto?
  4. Através da democracia  representativa ampliada pela participação popular solidária e a disseminação transversal dos conhecimentos científicos, está na hora de pensarmos novas formas de viver em sociedade, múltiplas, coemergentes e coexistentes. A bifurcação do mundo é artificial e é contaminada por um viés exploratório e desigual. Isso parece utópico, e realmente é, mas se não pudermos pelo menos imaginar um outro mundo, ele não acontecerá.

 Referências

Cesarino, Letícia O mundo ao avesso : verdade e política na era digital São Paulo, UBU, 2023

Foucault, Michel Microfísica do poder  organização e tradução de Roberto. Machado. - Rio de Janeiro: Edições Graal, 4~ ed. 1984. 

Guattari, Felix As três ecologias. Campinas, Papyrus, 1990

Marcílio, Maria Luiza História da escola em São Paulo e no Brasil, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/. Instituto Fernand Braudel, 2005.

Nunes, Rodrigo Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição/Rodrigo Nunes. São Paulo: UBU 2022.

Orwell, George . 1984 (p. 18). Book One Editora LTDA. Edição do Kindle. 

Zizek, Slavoj, Violência São Paulo, Boitempo, 2014