Vamos analisar alguns dos filmes que saíram de mãos vazias do Oscar 2023 chegando agora no streaming, mas que foram aclamados pelo público e que, curiosamente, giram em torno do arquétipo do clássico “O Senhor das Moscas”: “Triângulo da Tristeza”, “Os Banshees de Inisherin” e “Entre Mulheres”.
Seriam os perdedores do Oscar 2023 melhores que os premiados? É curioso de se pensar que os principais filmes laureados este ano foram aqueles que mais explicitam suas linguagens, externalizando os dispositivos narrativos de forma superlativa, enquanto que os mais sutis e internalizados foram os que mais passaram batido. Isto não diz respeito necessariamente à qualidade dos respectivos premiados, porém diz mais em relação ao perfil contemplado neste ano, já que temporadas diferentes focam em estilos diversos.
O mais inusitado, no entanto, é que três dos filmes que saíram sem nenhuma estatueta dourada ou quase nenhuma foram analogias exatas de um clássico da literatura que fala sobre um profundo mito de fundação social: O livro “O Senhor das Moscas” tem sua narrativa parafraseada de forma explícita ou implícita, evocando a alegoria sobre náufragos que vão parar numa pequena ilha após evento traumático e que são obrigados a se organizar como um novo coletivo, segundo suas próprias regras de sobrevivência.
Estreia recente na Amazon Prime Video, talvez o mais explícito exemplo no caso supracitado seja o "Triângulo da Tristeza" de Ruben Ostlund, ganhador da Palma de Ouro em Cannes 2022 e indicado ao Oscar 2023 de melhor filme, direção e roteiro original. Neste, há uma analogia irônica da construção social em comuna num naufrágio tirado diretamente de "O Senhor das Moscas", com a principal diferença de a tripulação ser composta por muitos ricaços cuja situação limite se torna catarse de uma comédia de costumes irônica e cáustica com risadas culposas diante do sofrimento alheio.
O diretor se especializou em fazer crônicas da elite com dispositivos disruptivos que desmoronam a estrutura proposta em cima de seus protagonistas. Mesmo em dramas anteriores, o diretor conseguia mesclar ligeiras pinceladas de humor ácido pelo absurdo ou non sense da situação disruptiva, com maior ou menor elegância ("Força Maior" no primeiro caso e "A Praça" no segundo).
Mesmo que meu favorito para a Palma em 2022 fosse "Close", é compreensível que a escolha de “Triângulo da Tristeza” fosse mais plausível, até com um reconhecimento de muitas produções críticas à extrema riqueza no mundo, e uma comédia de costumes assumida, do que a Palma anterior do diretor com "A Praça".
Agora temos um filme mais coeso, com criatividades visuais coerentes com a proposta, como a cena do elevador no início, ou o jantar escatológico que faz jus ao saquinho de enjoo distribuído em algumas salas de cinema de forma metalinguística. Ou mesmo a ilha deserta com o barco salva-vidas e a personagem "in den wolken", que é uma "gag" (piada) monocórdia que até consegue ser bem reaproveitada.
Além da maravilhosa personagem Abigail (Dolly De Leon), que vai representar o proletariado e desconstruir totalmente a estrutura de sociedade que os ricaços acreditam a partir do capital. É ela quem tira o elenco da camada um pouco superficial com que os arquétipos a princípio são tratados com um pouco de previsibilidade unidimensional, sem tridimensionalizar os ricos pra desconstrução ser ainda mais valiosa.
Um filme que assume sua proposta sem vergonha, mesmo às vezes estereotipado, mas que, quando acerta, alcançar catarses muito boas, especialmente quando faz o espectador se sentir desconfortável com o próprio riso da desgraça alheia de quem causa muitas das desgraças no mundo impunemente, mas que são humanos e podem sim ser responsabilizados e decodificados
Já o segundo exemplar a tomar referências de “O Senhor das Moscas” é bem mais cheio de subtextos: "Os Banshees de Inisherin" de Martin McDonagh, estreia da semana no streaming da Star Plus. É curioso que num ano em que mais da metade dos indicados ao Oscar apostou na explicitação da linguagem, sem deixar sutilezas pra imaginação, os filmes mais sutis e em subtextos tenham sido os que saíram de mãos vazias (“Os Banshees de Inisherin” e “Tár” – leia crítica deste segundo aqui). Porém, não se enganem com sua estrutura aparentemente simplista, jamais simplória, pois sua complexidade se traduz sob camadas de metáforas e analogias poderosas.
McDonagh conta a história de dois amigos que moram numa ilha minúscula e monótona e que entram em conflito, tudo simplesmente porque um passa a rejeitar de repente a amizade do outro, e o rejeitado não desiste da amizade, mesmo desencadeando problemas ainda piores para ambos. A narrativa se vale da mitologia celta clássica em torno da palavra “Banshees”, que seria a figura da mulher que anunciava a morte com seu lamento em grito ou pranto (algo que lembra a nossa tradição das choradeiras). Este recurso do realismo fantástico dá um tom místico à estética cinzenta de mormaço na ilha onde se passa a história, bem como à fumaça constante das explosões longínquas no continente onde se passa uma guerra civil (sobre a rebelião separatista do IRA, por exemplo).
A guerra que se instaura entre os dois amigos é metáfora não apenas da guerra civil separatista na Irlanda, mas também sobre identidade, criação e arte, bem como a morte necessária para renovação. O rompimento da relação deles é a cisão histórica e política da própria cultura irlandesa, bem como, por se dar numa ilha, é como se os dois amigos representassem mitos fundadores sociais como Caim e Abel, Rômulo e Remo, que se digladiam na formação de uma nova comunidade com novas regras, como em “O Senhor das Moscas”.
A trama versa sobre o quanto as intempéries e solidões de nossa vida adubam uma centelha interna e fazem ruir antigas certezas para erigir novas dúvidas. O quanto essas chagas abertas podem ou não ser convertidas num lirismo que sublimasse a carne e transcendesse o eterno. Neste sentido, o filme “Os Banshees de Inisherin” tem até muito a ver com Tár, por incrível que pareça, pois ambos usam a composição da música e a (im)possibilidade de regê-la na condução de uma releitura dessa história tão calejada.
É certo que este foi o trabalho mais maduro do respectivo diretor, que parece enfim ter saído da infância e adolescência de seus roteiros. E olha que gosto bem de seu curta ganhador do Oscar "Six Shooter" (até hoje única estatueta), adoro a comédia de máfia ácida e sombria em longa-metragem "Na Mira do Chefe", e até consigo rir com a bobageira descartável e maneirista à la Guy Ritchie "7 Psicopatas e um Shih Tzu"... Mas sou um raro contracorrente que não engulo "Três Anúncios para um Crime", representando a adolescência rebelde e punk do diretor que virou as costas pra sua Irlanda natal onde domina o humor cáustico e tentou imergir no politicamente incorreto norte-americano de forma vergonhosa (ao meu ver: sem ofensas a quem gosta, mas não esqueça que as gargalhadas são culposas, pois rir daquilo tudo é bem complexo).
Para aqueles talvez um pouco incrédulos com a simples trama sobre um amigo que do nada deixa de falar com o outro e decide seguir caminhos separados sem sobreaviso, incitando uma guerra entre eles no vilarejo da Ilha chamado Inisherin, creiam, eu mesmo já passei por algo idêntico, até pior, com uma pessoa oportunista e interesseira que até tentou caluniar e difamar a mim e aos meus. E para quem se choca com o simbolismo dos 5 dedos cortados, são a mais pura alegoria do contexto maior de o quanto temos de abrir mão para desapegar de velhas noções pré-concebidas.
Isso tudo é demonstrado pela melhor cena do filme quando o personagem de Colin Farrell fala bêbado no bar para seu ex-amigo, ora desafeto (Brendan Gleeson), sobre gentileza e a bondade como necessários na vida, enquanto o outro está se deixando guiar pelo conflito e inconformismo para tentar criar algo novo. Algo eterno. Mas é a singela correção da irmã de Colin Farrell (com o bom rendimento singelo da atriz Kerry Condon), quando corrige que Mozart não viveu no século XVII e sim no XVIII, que demonstra o quanto a imortalidade da arte às vezes também é só uma questão de perspectiva, calando fundo nas falsas certezas e arrogância do personagem de Gleeson.
Aliás, por falar nos atores, quase todos costumam trabalhar em vários projetos do diretor, especialmente Farrell e Gleeson, que reprisam a ótima química de "Na Mira do Chefe", além de contrapor uma inocência e pureza quase non sense inédita para o primeiro versus o ápice da rabugentice na longa experiência do segundo. Vale também destaque para o personagem esdrúxulo e especial de Barry Keoghan (que já havia contracenado com Farrell em "O Sacrifício do Cervo Sagrado").
E, mesmo com todas essas metáforas numa interessante fotografia indevassada na ilha sem prédios e sem obstáculos diante do horizonte infinito, ainda assim McDonagh comprova que é mais virtuoso em sua criatividade na escrita do roteiro do que necessariamente em sua direção de câmera (a de atores é ótima, ainda que tenha sido apenas a primeira indicação dele ao Oscar como diretor, já que acumulava estritamente nomeações por seus roteiros). A visualidade cíclica da Ilha e do Pub pode parecer monótona ou repetitiva para os olhares mais desatentos, mas até que ela acerta aqui em criar o cenário ligeiramente místico à la Sísifo, com muito mais tridimensionalidade musical e em ruídos do desenho de som do que na necessidade de mudar a locação, já que eles precisam estar obrigatoriamente confinados pela Guerra – perdão pelo trocadilho, mas entendedores entenderão quando digo que as escassas notícias do continente a não chegar na Ilha e a violência policial interna a reproduzir a intolerância externa são muito mais "All quiet on the western front" do que o "Nada de Novo no Front" alemão que concorreu contra Banshees.
Vale uma ressalva final para elogiar o personagem do jumento, e acrescentar o quão curioso que nesta edição do Oscar tenham figurado tantos ruminantes em vários filmes como "Eo" e "Triângulo da Tristeza" e em nenhum deles os burrinhos tenham tido um final feliz...
Por fim, mas não menos importante, nós temos “Entre Mulheres” ou “” no original, cuja tradução literal é “mulheres conversando”, ainda em cartaz nos cinemas e chegando aos streamings em breve. Como tais palavras já exprimem, o título se refere de imediato ao dispositivo com o qual a história é contada: quase um cenário único, aludindo ao palco de um teatro, com um grupo de mulheres dialogando sobre a violência que dispara a trama e leva o grupo a ter de tomar uma decisão.
O gatilho da trama diz respeito a casos reais de abusos e estupros em comunidade ortodoxa e religiosa que inspiraram o livro homônimo de Miriam Toews, mesmo que a abertura do filme aluda de forma irônica em suas cartelas iniciais que tudo seria apenas fruto da imaginação de mulheres. Evidente que a diretora (também responsável pela adaptação recém-oscarizada do roteiro) está apenas apontando de forma ainda mais denunciativa a própria hipocrisia com que acusações semelhantes as do filme sejam recepcionadas pelos homens como “loucura” ou “histeria” – evidente preconceito e distorção manipulativa por parte do patriarcado das alegações de mulheres sobre abusos reais.
Lembrando também que nem o filme nem a presente crítica estariam de forma alguma desejando desacreditar a fé das pessoas, e sim apenas desinvisibilizando quantas formas de manipulação que o patriarcado possui para sujeitar mulheres a comportamentos submissos, inclusive com o mau uso da religião (afinal, a fé pode ser atemporal, mas as ferramentas das religiões são criadas pelos seres humanos para se organizar socialmente, e podem refletir as mesmas falhas de seus condutores). E, aqui, acompanhamos um pequeno grupo de corajosas mulheres a debater como representantes de toda a comunidade delas, a partir do voto através de plebiscito popular, para definir qual será o curso tomado pelo coletivo: contra-atacar os homens com violência; perdoá-los sob a fé delas; ou deixarem aquela comunidade para sempre, todas as mulheres e crianças, para que os homens aprendam a se virar sozinhos.
Enquanto a espinha dorsal do filme funciona a contento na técnica escolhida de confiná-las numa reunião em ambiente único, de forma mais teatral, as cenas e áreas externas acontecem mais como flashbacks ou em montagens de transição, nos pequenos descansos entre diálogos, antes que os homens voltem da cidade grande, onde foram libertar sob fiança os poucos abusadores que foram responsabilizados até agora.
Talvez o que mais assuste seja exatamente a impunidade no decurso do tempo em que casos como estes acontecem repetidas vezes, pois apesar de o trailer do filme ter feito parecer uma história de época, devido a roupas mais retrós, na verdade, a partir da segunda terça parte da projeção, temos a revelação de que essa comunidade ortodoxa vive nos tempos atuais – algo bem próximo de toda a contemporaneidade e suas pós-verdades que suprimem passados injustos ainda em vigor.
Na dúvida se estas personagens devem ficar e lutar, ou perdoar aqueles homens, ou mesmo ir embora e formar uma nova comunidade, mesmo que não se trate de um naufrágio literal como em “O Senhor das Moscas”, ou mesmo de uma ilha material, temos situações metafóricas que forçam estas mulheres a teorizar e refletir sobre qual tipo de sociedade elas desejam constituir e botar em prática para seus filhos. As várias divergências e suas respectivas defensoras acabam representando os mesmos grupos do clássico livro sobre jovens náufragos ilhados numa espécie de tabula rasa hipotética, tendo de decidir entre a violência e selvageria, ou a fé no mistério absoluto ou a reinvenção total, à luz da possibilidade de criar uma nova sociedade e quais regras lhes seriam aplicáveis.
O elenco também está muito bem azeitado, e é quem valoriza os ótimos diálogos desta adaptação complexa, que nem sempre acerta quando arrisca e nem sempre arrisca quando deve, especialmente a contraposição de extremos entre as decisões de lutar ou de perdoar e fingir que nada aconteceu (ou que volte a acontecer), o que gera a excelente mediação plácida da personagem de Rooney Mara (“Os Homens que Não Amavam as Mulheres” e “Ela”). Além do ótimo destaque desta, que ainda ganha uma espécie de par romântico platônico no único homem que estaria do lado delas encarnado pelo sempre ótimo Ben Whishaw (da franquia “007” e “Brilho de Uma Paixão”), as atrizes mais velhas roubam a cena das mais novas, tanto pela fé inabalável da personagem de Judith Ivey (de “Advogado do Diabo”), quanto pelas anedotas e parábolas de Sheila McCarthy que quebram o gelo às vezes sem quebrar a tensão (de “O Dia Depois de Amanhã”).
Pena que algumas contradições não potencializem ainda mais o texto, como a própria existência do personagem de Whishaw, pois, apesar da boa atuação de sempre, nem precisava existir, já que as mulheres conversando no título se bastavam – mas não vamos esquecer que para um público masculino que veja o filme ainda é necessário haver um representante masculino num lugar de escuta para que eles entendam e se vejam naquele personagem na vida real, senão a lição do filme se esvazia na prática. E duas das atrizes mais potentes da nova geração acabam ficando um pouco ofuscadas, porque uma é utilizada de forma explosiva logo de início querendo vingança, e acaba apagada depois (Claire Foy, de “The Crow”), e outra que começa apagada e só rompe a casca quase no final, quando enfim ganha camadas menos monocórdias (Jessie Buckley, de “A Filha Perdida”). Sem falar nas menos desenvolvidas, como o interessante personagem trans (August Winter, de “Protesto Silencioso”) ou a participação relâmpago da oscarizada Frances McDormand (de “Nomadland”), que está ali mais como produtora que ajudou o filme a se tornar realidade junto com o produtor executivo Brad Pitt.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.