RIO DE JANEIRO

"Justiceiros" de Copacabana: da civilização à barbárie pelo talião bolsonarista

Ação de milícias formadas por bad boys e lutadores de jiu-jitsu brancos para "caçar" menores infratores negros mostra que gabinete do ódio do clã Bolsonaro remeteu parte da classe média alta aos tempos da barbárie

Deputado Anderson Moraes (esquerda) em ato pró-armas com Carlos Bolsonaro na Câmara do Rio.Créditos: Flávio Marroso / CMRJ
Escrito en OPINIÃO el

Há quem diga que o Brasil regressou aos cruéis tempos da Ditadura nos quatro anos em que imperou o governo fascista de Jair Bolsonaro (PL). No entanto, as cenas de grupos de "justiceiros", formados por bad boys e lutadores de jiu jitsu, espancando menores infratores que cometem assaltos e pequenos delitos pelas ruas de Copacabana, no Rio de Janeiro, revelam que o bolsonarismo levou uma parcela da classe média alta brasileira a retroceder séculos na história da humanidade - se é possível ainda chamarmos por esse nome.

A barbárie perpetrada pelos grupos higienistas no bairro encravado entre a orla símbolo da capital fluminense e os morros, para onde foi empurrada a população negra durante o processo histórico de desenvolvimento do Rio, por pouco não deixou um trabalhador morto.

Com o rosto deformado pelos socos dos brutamontes, Matheus Almeida contou ao vivo na Globo - emissora que retrata os anseios da elite carioca - ter sido espancado "por engano" quando vendia balas no comércio da região para sustentar a família que vive no bairro mais longínquo do centro, na zona Oeste da cidade.

“Sou pai de família, trabalho honestamente. Sou trabalhador, todo mundo sabe. Olha como eu me visto, não sou mendigo, não sou cracudo. Eu saí lá de Santa Cruz, tenho uma filha, uma esposa e preciso levar alimentação para casa. Não preciso roubar nada de ninguém. Meu negócio é trabalhar”, disse Matheus, negro como seus pares que têm sido "caçados" pelos bad boys na região.

Em uma extensão narrativa do Gabinete do Ódio do clã Bolsonaro, que ironiza o governo "do amor" de Lula, moradores da região cunharam e propagaram em grupos de WhatsApp até mesmo um distintivo para os "caçadores de ladrões", onde se lê "Zona Sul: Acabou o Amor".

 Pregam a barbárie, um retrocesso que remete ao código babilônico do rei Hamurabi, datado de 1770 a.C., onde a Lei de Talião prega o "olho por olho, dente por dente", o justiçamento, como pode ser traduzido nos tempos "modernos".

"Em primeiro lugar, justiça pelas próprias mãos nem é justiça, por óbvio, mas uma situação anticivilizacional. Um fracasso da civilização, do Estado, da Justiça, do ser humano. Só falar em justiça pelas próprias mãos, em justiçamentos, só falar nisso já é a prova do fracasso total do Estado e da democracia. Fracasso de primeiro nível", afirmou, indignado, à Fórum o jurista e procurador aposentado Lenio Streck.

Mas, a barbárie bolsonarista não para por aí. Bajulador contumaz do clã e autor de projeto que concede a Medalha Tiradentes, a maior honraria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ao "herói" Carlos Bolsonaro (Republicanos), Anderson Moraes (PL) apresentou um projeto para legalizar a ação das milícias. Sim, ao grupo que deu - e ainda dá - sustentação político-eleitoral a Jair Bolsonaro e filhos no Rio de Janeiro.

A proposta institui o "programa Guardião da Segurança Pública", composto "por cidadãos praticantes de artes marciais ou ex-agentes de segurança pública ou privada" para atuar em "áreas de altos índices de roubos e furtos".

"Justamente até para os lutadores não ficarem na informalidade, trazermos eles para o jogo, de forma que serão treinados pelas forças de segurança, justamente para eles não ficarem da forma ilegal, como os meliantes ficam. Eu acho importante eles defenderem o bairro onde vivem, porque sinceramente está muito difícil conviver", justificou o bolsonarista, que admitiu que se trata de legalizar a atuação das milícias.

Para Streck, a proposta do bolsonarista sobe mais um degrau no "fracasso civilizacional" em que a ultradireita fascista busca levar a civilização.

"Pensar em institucionalizar, legalizar, grupos milicianos, paraestatais, é um fracasso de segundo nível. Aí, efetivamente, nós teremos que dizer que a humanidade é um projeto que deu errado. Não há muito a dizer sobre isso. A tentativa de um projeto desse tipo e os atos que estão sendo realizados por milicianos são autoexplicativos. Realmente vem ai um dilúvio 2.0, porque não é possível que cheguemos a esse patamar", afirmou o jurista.

Na pele e na alma

Mãe de Rafael da Silva Cunha, detido aos 15 anos por um assalto e morto aos 20 anos pela Polícia Civil após denúncias de abusos no sistema correcional de menores no Rio, a vereadora Monica Cunha (PSOL) lembrou da Chacina da Candelária - ação de milicianos que resultou na morte de 8 adolescentes na região central do Rio em 1993 - ao ver as cenas em Copacabana.

"É pavorosa a notícia sobre grupos de justiceiros na zona sul caçando adolescentes de chinelo, bermuda e sem camisa. Esse tipo de ação nunca funcionou e só dá motivo para a violência e a morte de crianças e adolescentes sobretudo, negros. Ou seja, é um sintoma óbvio do racismo que nos estrutura, seja na permissão para a violência contra esse tipo de corpo, seja na ausência de políticas públicas comprometidas com a população pobre e preta dessa cidade", afirmou.

A vereadora, que confronta Carlos Bolsonaro na Câmara do Rio com seu "bonde antirracista", lembra ainda que o que ocorre no Rio é um reflexo do fascismo de ultradireita que se propaga em discurso de ódio pelo mundo.

"O Rio já viveu exemplos como a Chacina da Candelária, mas seus 'gestores' parecem não ter aprendido essa lição e há anos continuam retirando direitos, batendo em trabalhador e invadindo a favela com bala de fuzil. É um absurdo ver parlamentares estimulando esse tipo de violência, que nos remete a episódios - no mundo inteiro, em que o fascismo e o racismo se fizeram presentes", emendou a vereadora.

Os vídeos que se propagam nos grupos de WhatsApp, onde a ação miliciana foi convocada, e nas redes sociais, onde bad boys e lutadores brancos espancam meninos infratores negros é a materialização do discurso de ode à violência racista, higienista e classista propagada pelo clã Bolsonaro e seus asseclas.

Após a madrugada de justiçamento nas ruas de Copacabana, Carlos Bolsonaro foi às redes e publicou dados de um suposto aumento de roubo de celulares em Copacabana. De forma irônica, buscou justificar a ação das milícias, que o clã protege. E incitou a horda de apoiadores a aplicarem o talião bolsonarista, dando mais alguns passos no caminho que separa a civilização da barbárie.