Nos últimos dias, viralizou na internet o vídeo em que a auxiliar de serviços gerais de um shopping center em Ipatinga (MG) é ofendida por uma cliente. “Você não passa de uma faxineira analfabeta. Eu sou rica e estou de férias. Você está no seu lugar, lugar certo, que é seu. Sua palhaça analfabeta”, disse a mulher.
Conforme informações do UOL, as ofensas ocorreram após a auxiliar advertir uma adolescente que acompanhava a mulher sobre o piso molhado.
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Evidentemente, o fato gerou indignação nas principais redes sociais. No entanto, poucas pessoas atestaram o óbvio: não se trata de um “caso isolado”, um “acidente”; mas um exemplo emblemático da própria dinâmica das relações entre as classes sociais no Brasil, herança do passado escravocrata. Nesse sentido, é oportuno recorrermos à obra de Jessé Souza.
Segundo Jessé, há basicamente quatro classes sociais no Brasil, classificadas não apenas pelo fator renda ou pela posição em relação aos meios de produção, mas, sobretudo, pela capacidade de transmitir determinados hábitos, costumes, visões de mundo e valores para seus descendentes.
No topo da pirâmide social está a elite, parcela ínfima da população (0,001%), caracterizada pela concentração do capital econômico e pelo desprezo pelo Brasil (o que dificulta nosso desenvolvimento). Por isso é também conhecida por “elite do atraso”. São os latifundiários, donos de redes de televisão, banqueiros, grandes empresários e industriais. Em bom português, são os verdadeiros “ricos”, os “endinheirados”.
Logo abaixo, vem a “classe média”, 20% da população, definida pelo “capital cultural”, ou seja, o acesso ao “conhecimento legítimo”, produzido nas universidades, que se traduz em diplomas que garantem os melhores empregos (advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, professores universitários etc.). É aqui que se enquadra a mulher que ofendeu a auxiliar de serviços gerais. Não por acaso, em seus xingamentos, ela proferiu aquele que talvez seja o maior devaneio megalomaníaco da classe média: se achar “rica” (quando, na verdade, é mero fantoche dos interesses da elite, haja vista, por exemplo, os indivíduos que vestiram verde e amarelo para pedir golpe de Estado contra Dilma Rousseff).
Já a ofensa à faxineira do shopping como “analfabeta” reforça a ideia da classe média como detentora do “conhecimento legítimo”, o que também nos ajuda a explicar, entre outras questões, a ojeriza à política de cotas (pobres e pretos adentrando a universidade, espaço por excelência de reprodução da classe média).
Em sequência (cerca de 80% da população), há a “classe trabalhadora”, altamente precarizada (ou em vias de precarização) e a “ralé”, os excluídos e marginalizados, praticamente “subcidadãos”, expostos a todos os tipos de humilhação cotidiana (como o caso da auxiliar de serviços gerais do shopping em Ipatinga). Enquanto a “classe trabalhadora” é o “pobre remediado”, a “ralé” é a “pobreza em estado bruto”. São os descendentes de escravizados, de quem “herdaram” os atuais ódios e desprezos de elite e classe média.
Portanto, quando a cliente do shopping ofendeu a faxineira, dizendo que ela “estava em seu lugar” (“subalterno”) nada mais fez do que escancarar como (infelizmente) funciona o jogo das classes sociais no Brasil, sem rodeios ou eufemismos. Como todo indivíduo “invisível” da “ralé”, a auxiliar jamais poderia se dirigir verbalmente a alguém da classe média (tal como os escravizados deveriam desempenhar calados suas funções durante os períodos colonial e imperial).
Se, estando “no seu lugar”, a “ralé” já é ofendida no shopping, imagine, então, quando estes indivíduos adentram no templo do consumo, não como “funcionários”, mas como “clientes”?
Basta lembrarmos como, há uma década, os adeptos dos “rolezinhos” (como eram conhecidos os passeios de jovens periféricos em shoppings) foram estigmatizados pela mesma mídia hegemônica que hoje noticiou (supostamente indignada) o caso das ofensas à faxineira. Na época, Rachel Sheherazade, então no SBT Brasil, chegou a se referir aos membros dos “rolezinhos” como arruaceiros que se reúnem em locais privados e “tocam” o terror.
Com a melhora na economia e a potencialização das políticas sociais, é muito provável não apenas a volta dos “rolezinhos”, mas também as presenças de pobres em aeroportos e pretos nas universidades. Consequentemente, não será surpresa se aumentar o número de protestos contra o governo do PT (visto como “culpado” pela ascensão social dos setores historicamente subalternizados).
Como bem explicou o supracitado Jessé Souza, nem sempre o ódio ao pobre se mostra de maneira explícita (como o caso do shopping em Ipatinga). Muitas vezes ele vem disfarçado sob o moralista discurso de “combate a corrupção”.