MODA E POLÍTICA

Venezuela: nova geração de estilistas cria movimento nacional de moda

Com uma linguagem urbana que mescla elementos culturais da capital venezuelana, jovens criativos de Caracas iniciam um movimento conectado com a realidade do país

Créditos: Fotomontagem - @_garzez_ e @rocatarpeya_
Escrito en OPINIÃO el

Há uma disputa em curso aqui na América do Sul pela região do Essequibo, rica em petróleo. De um lado a Venezuela e de outro a Guiana. No meio, o Brasil, que vai atuar como observador das negociações.

Nesta quinta-feira (14) ocorre uma reunião entre os presidentes venezuelano, Nicolás Maduro, e guianense, Irfaan Ali, em São Vicente e Granadinas, um pequeno país insular do Caribe. O assessor especial do Palácio do Planalto para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim, vai representar o presidente Lula.

Eu vou abordar outro assunto relacionado à Venezuela, o movimento de jovens estilistas de Caracas. De uma forma ou de outra esse tema está ligado à indústria do petróleo e ao cenário político do país caribenho. Afinal, a moda espelha o espírito do tempo.

Movimento nacional de moda

A nova geração de estilistas que surge em Caracas é movida pela ideia de construir um movimento nacional de moda com características próprias a partir de elementos particulares e íntimos da capital venezuelana.

A inspiração desses jovens designers de moda vêm de elementos urbanos que impregnam o cotidiano da cidade. O resultado são peças repletas de metáforas e abstrações que podem ir do sarcasmo até a provocação.

O correspondente do Brasil de Fato em Caracas, Lucas Estanislau, escreveu em julho uma matéria na qual apresenta três estilistas dessa nova geração criativa da capital da Venezuela.

Alejandro Garcés, da marca Garzez, usa as peças que cria para mostrar ao mundo os detalhes do que é ser venezuelano. Ele define a grife que comanda como "uma união entre a moda e o ato de documentar o tempo presente".

Instagram @_garzez_

As jovens Gabriela García e Nicole Crespo estão à frente da Roca Tarpeya, cujo nome faz referência a uma colina de Caracas. As peças delas também apelam para o cotidiano da capital venezuelana e suas texturas.

Instagram @rocatarpeya_

As duas marcas representam um novo estilo caraquenho que remete a uma linguagem urbana que explora a cidade e elementos culturais como o tuki, o brandalismo e a filosofia dos ônibus.

Tuki, o ritmo das periferias

TeleSur - Hugo Chávez

A cultura tuki, a partir de um movimento de música eletrônica venezuelano no início dos anos 2000, definiu roupas, danças e uma identidade à juventude periférica. É uma forma de expressão que reflete individualidade e atitude.

O período de nascimento dessa cultura urbana coincidiu com o auge da bonança petroleira e redistribuição de renda iniciado pelo então presidente Hugo Chávez, morto em 2014, que governou o país entre os anos 1999 e 2013.

Chávez desenvolveu um modelo de governo soberano, produtivo, de inclusão, igualdade social e protagonismo popular e derrotou democraticamente o golpismo das elites venezuelanas.

O tuki, também chamado de changa tuki, é comparado ao punk, ao hip-hop e ao funk brasileiro. Tem uma sonoridade agressiva e estética desafiadora. 

Elites alheias

Esse estilo de vida desenhado há quase três décadas pela juventude dos bairros pobres em Caracas criou uma subcultura em torno da música eletrônica, dando origem ao changa tuki, um gênero único de dance music. 

O movimento, nascido nas comunidades marginalizadas e influenciado por sua realidade vibrante e desafiadora, é caracterizado por seu ritmo acelerado e interação entre DJ e dançarino. 

O changa tuki reflete a energia e a complexidade da capital venezuelana e continua a moldar a cena da música eletrônica e do estilo na Venezuela.

Nascido na marginalização social, o tuki criou códigos próprios e uma expressão visual impactante, como resposta à discriminação por identidade e origem. 

A ficha da elite de Caracas demorou a cair e o gênero de dance music escapou à atenção dos mais abastados e, na maioria, brancos. 

A Venezuela, como muitos países ricos em petróleo, sofre com a desigualdade social entre ricos e pobres. Sob a liderança de Chávez esse abismo social começou a ser mitigado e o tuki é resultado desse processo.

Moda Tuki

Facebook Megamix

O estilo de roupa associado ao movimento tuki na Venezuela inclui o uso de calças justas, geralmente em cores nacionais: vermelho, verde e amarelo; gorros com viseira plana, flanelas ajustadas em cores chamativas, óculos escuros, e tênis Nike, Adidas ou Converse em cores vibrantes, além de acessórios coloridos.

Destaque para os penteados ousados, no estilo "sayayin" que é marcado por cores vibrantes e a semelhança a personagens de anime, especialmente "Dragon Ball", de onde vem o nome da tendência, em referência aos Saiyajins, uma raça de guerreiros no anime. 

Apropriação no brandalismo

Garzez - Exemplo de brandalismo

Outro elemento que inspira a nova geração de estilistas venezuelanos é o brandalismo. Trata-se de uma forma de protesto e crítica que utiliza a apropriação, intervenção e resignificação de logomarcas, símbolos comerciais e estatais, além de outros tipos de peças publicitárias. O nome vem da palavra em inglês brand (marca).

O brandalismo surgiu como uma resposta a diversas problemáticas sociais e culturais da Venezuela e oferece uma perspectiva crítica sobre a publicidade e o consumismo. 

O movimento se manifesta em diferentes meios, como redes sociais, revistas independentes e espaços públicos. 

As primeiras coleções da Garzez elaboradas por Alejandro se inspiraram no brandalismo. Ele se apropriou de logotipos de marcas famosas da Venezuela e de fora para subvertê-los e dar novos sentidos.

As ideias que estampam as camisetas e agasalhos sempre dialogam com elementos da realidade venezuelana como, por exemplo, a utilização da palavra "Malandro" com o logotipo do cigarro "Marlboro", ou da expressão "Fino" com a arte da marca esportiva "Fila".

O conceito brandalismo ainda está em construção e é visto como uma maneira excepcional de protestar e refletir sobre a realidade comunitária.

Embargo econômico dos EUA

Uma camada dessa realidade na Venezuela que serve de combustível para o brandalismo é o embargo econômico dos EUA contra o país que teve início no mesmo ano da morte de Chávez, em 2014.

A lei estadunidense proíbe empresas estadunidenses ou estrangeiras com negócios nos EUA de fazer negócios com a Venezuela. 

As sanções impostas à Caracas afetam principalmente sua população, especialmente as camadas mais pobres. Isso se deve ao aumento significativo da inflação e à escassez de recursos para serviços públicos essenciais e programas sociais governamentais.

Com a escalada do conflito na Faixa de Gaza, no Oriente Médio, região produtora de petróleo, Washington suspendeu temporariamente algumas sanções sobre o petróleo, gás e ouro da Venezuela, em resposta ao acordo eleitoral de 2024 entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição. 

Filosofia dos ônibus

Instagram @_garzez_

A mais recente coleção de Alejandro é inspirada nos ônibus coloridos e personalizados das grandes cidades venezuelanas. c

Esses veículos chamam atenção pelas cores vivas e frases impactantes, refletindo a criatividade dos motoristas que os decoram em diversas partes, desde assentos até a lataria.

A Garzez incorporou essas frases que refletem a filosofia popular venezuelana nas peças. Expressões como "Elegância e maldade" e "a inveja é sua" são exemplos de como essas citações capturam a essência cultural do país.

Alejandro explica que os ônibus de Caracas são um reflexo do universo e dos pensamentos dos motoristas que se manifestam no design dos veículos. 

Essa identidade única afeta não apenas os passageiros e pedestres, mas também, segundo ele, impacta esteticamente até mesmo os mais ricos em suas Ferraris, ao observarem os ônibus.

Texturas da cidade

Instagram @rocatarpeya_

As estilistas da Roca Tarpey enfatizam o uso de elementos cotidianos e abstração para refletir sobre a realidade venezuelana. 

As criações de Gabriela García e Nicole Crespo, que vão de vestidos a bonés, são estampadas com colagens de fotografias de paisagens urbanas, incluindo favelas e rios poluídos. 

Elas buscam capturar as texturas, cores e relevos de Caracas, vendo a cidade como matéria-prima poética para suas peças, ao invés de apenas representar objetos concretos.

A Roca Tarpeya também tem conexão com o movimento tuki e enfatiza sua origem nas periferias e seu impacto no 'streetwear' de Caracas. 

Apesar de suas raízes nas classes populares e nas favelas, o estilo tuki é agora adotado pela classe média. 

As estilistas destacam a importância em revalorizar e reconhecer o estilo para contribuir para mudar a percepção sobre as favelas.

Com ou sem Essequibo e suas reservas de petróleo, a juventude da capital venezuelana segue na busca da soberania e identidade nacional propagadas pelo chavismo.

A despeito dos ataques incessantes do ocidente contra Chávez, a inspiração do movimento liderado por ele segue pulsante e colorido.