OPINIÃO

Lula não é Merlin nem Dumbledore

Todavia, a luta social em um contexto de governo progressista pode mudar muito o Brasil – e o mundo.

Dumbledore, Lula e Merlin.Créditos: IMDB/ Ricardo Stuckert / Reprodução YouTube
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50,9% x 49,1%. Em termos absolutos, Lula teve 2.139.645 votos a mais do que Bolsonaro na segunda volta das eleições de 2022.  É muito, mas é pouco. Imaginem se o candidato da esquerda fosse qualquer outro. 156 milhões de brasileiros tinham direito a votar, mas apenas cerca de 124mi saíram de casa para apertar aquele monte de números na urna eletrônica.

Em 1989, na primeira e icônica eleição pós ditadura, Collor venceu Lula no segundo turno. 53,06% a 46,97%. Cavalgando os resultados positivos do Plano Real, FHC venceu Lula em 1994 já no primeiro turno -  teve cerca de 34 milhões de votos (contra magros 17 milhões do petista). Uma surra: 54% a 27%.

FHC, o príncipe dos sociólogos (um dia queria entender a origem dessa lenda, afinal o título de patrono da sociologia obviamente cabe à Florestan Fernandes. A origem operária e os compromissos socialistas do mestre Florestan, contudo, eram essencialmente incompatíveis com fumos, salamaleques ou títulos nobiliarcais.  Nunca hei de me esquecer que o mestre  recusou  a tratar-se em hospitais particulares, mesmo com a oferta de vários amigos que poderiam custear todos procedimentos. Dizia que seria um usuário do mesmo sistema ao qual o povo tem acesso. Em 1995, quando morreu, recordo-me que fiz uma fala em Assembleia Estudantil, como presidente do DCE da UFV homenageando-o, com a voz embargada.

Voltando ao orientando de Florestan que não seguiu seus passos, o tal FH implementou o Plano Real e assim logrou controlar a inflação, um problema que se arrastava desde o início dos anos 1980. Aproveitando o ensejo, surfando em sua popularidade e no maciço apoio da burguesia interna e do imperialismo, aprovou a possibilidade da reeleição para detentores de cargos executivos.  

Como FH, ele mesmo, em si, o próprio se definiu foi “O improvável presidente do Brasil”, título de sua autobiografia. A perspicácia do editor norte-americano acrescentou sal e pimenta ao nome da  obra  vertida para  o  inglês assim:  “The accidental president of Brazil”.

A estabilização neoliberal e a própria presidential figure de FHC foram lapidados, concebidos e implementados pela máquina do imperialismo norte americano e seus lacaios locais.  FMI, Banco Mundial, Bird, Rede Globo, Folha de São Paulo, Estadão et caterva. O seminal livro de José Luiz Fiori desenhou detalhadamente esse processo.[1]

Na verdade, não foi FHC quem criou o Plano Real. Mas o Plano Real foi concebido de executar     um ajuste estrutural (lembram do Consenso de Washington?) e, assim,  eleger um político programaticamente comprometido com tais teses. É preciso lembrar que atravessamos um duro ciclo neoliberal em toda América Latina nos anos 1990. Menen na Argentina, Eduardo Frey no Chile, Fujimori no Peru, Collor e FHC no Brasil.

Em 1998, mesmo com crise econômica instalada e sem a magia do Plano Real, ainda assim o tucano surrou Lula novamente.

O professor da USP obteve 53,06 %, ou seja, 35.936.382 milhões de votos -  contra magros 31,71% de Lula: 21.475.211 (o gigante Brizola era o vice -  fato histórico, que consolidou o processo de passagem do bastão do brizolismo para o petismo).

O pioneiro, salvo melhor juízo, em desvelar os perversos mecanismos do Plano Real, a farsa burguesa urdida com alta sofisticação - foi o grande José Luís Fiori.

Li seu artigo seminal na Folha, em 3 de julho de 1994. Fiat Lux. Ajudou demais a explicar estruturalmente o que estava rolando, contribuindo para a elaboração do pensamento da esquerda.

FHC sobreviveu à crise mundial de 1997. Reelegeu-se. Mas sua margem de manobra já era muito menor.  A situação social deteriorou-se. Não havia mais efeitos supostamente benignos do Plano Real, o ele já havia privatizado o que deu, os juros estavam nos píncaros, a dívida pública só crescia.

Quando Fernando Henrique assumiu, a dívida pública correspondia à 23% do PIB. Ao deixar o governo virou 57%. Um troço impressionante – ainda mais se considerarmos que ele vendeu a Vale do Rio Doce, a Telebrás, linhas ferroviárias, a Light, o Banespa (e todo sistema de bancos públicos estaduais). O livro paradigmático – e de leitura acessível -  que descreve esse processo é A privataria tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Junior.

Lula e a jornada do herói

Darei um salto triplo carpado. Iremos do neoliberalismo tucano ao neofascismo ultraliberal. Pensar que um sujeito isolado, tosco, ultrarradical, caricato, sem partido ou força organizada eleger-se-ia presidente da República no Brasil era algo inimaginável. Talvez   faltou-nos uma leitura mais apurada do cenário, da crise capitalista e da ascensão   mundial da extrema-direita.

O fato é que prenderam Lula, o maior e mais popular líder do país. Coisa que 90% dos militantes da esquerda consideravam simplesmente algo impossível (a fonte desse dado são as vozes da minha cabeça).

A biografia de Lula parece um roteiro meticulosamente estruturado com base nas melhores teorias narrativas e no famoso “arco do herói”.

Um menino pobre, nordestino, rompe a sina de morrer por lá e vem com a família a busca de melhores condições de vida. Cresce, estuda um pouco, aprende uma profissão operária. É a fase do “mundo comum”. Mas o futuro herói é chamado à aventura: venha ser sindicalista.  Ele hesita momentaneamente. O encontro com o mentor talvez seja a convivência seu irmão comuna e com os próprios peões.

Depois os primeiros desafios: as grandes greves, a fundação do PT. E aí vem os primeiros desafios.  A perda da primeira esposa. O fracasso eleitoral de 1982. E começam as denúncias de apartamentos, de que recebe dinheiro de patrões.

Sintetizando, chega então a fase da provação. É o sacrifício. 580 dias preso. Todas forças do herói devem ser reunidas. É a maior provação de todas. Difamado, preso, repudiado, o herói precisa sobreviver.

Entretanto, ele supera o desafio. Lula livre. É o momento de desfrutar da recompensa depois do martírio. Retorna ao ponto de partida como vitorioso. Sai mais forte ainda, torna-se mais preparado para lidar com toda e qualquer adversidade.

Agora vem a recompensa. Nosso herói retorna como vitorioso. Ganha um tesouro: vira presidente da República mais uma vez. Estamos exatamente nesse momento da jornada.

O terceiro governo é neoliberal e fiscalista?

A mitologia do ponto anterior deixa nítida minha posição. O   reformista moderado não decidiu ser presidente de novo para fazer menos. Mas, e Haddad? É preciso separar a espuma do chopp. Manchete do PIG não é sinônimo de política pública efetiva. Tem tanta ansiedade e pessimismo e setores da esquerda que até parece que já não vivemos isso antes.

Lula é um gradualista. E sabe que herdamos um Estado totalmente desestruturado. É incomparável com a situação de 2002.  Estamos em 2023 e muitos dos nossos falam como se estivéssemos em setembro de 2026, com a eleição perdida.

Ademais, nunca governamos tendo um movimento de massas neofascistas pressionando-nos, enfiando a faca em nossas costas diariamente. Portanto, temos nós que mudar nossa forma de fazer política. Não dá para focar em ganhar eleiçãozinha aqui e ali. Urge organizar gente e entrar no jogo pesado da disputa ideológica e cultural.

Ou seja: defender o socialismo, o feminismo, o antirracismo, as LGBTI, a legalização das drogas, a reforma das PMs, o fim do porte de armas para civis, a reforma das Forças Armadas. É pauta máxima, assim como fazem os fascistas! 

Mudou o zeitgeist. É outro l'esprit du temps. Estamos em nova conjuntura histórica.  Acabou o espaço para os nem nem, para aquela esquerda do veja bem, vamos mediar, diálogo. 

Cessou o tempo para mimimi social liberal reformista, recuado, institucionalista, pragmático, sem coluna vertebral. Estamos no centro de uma pesada guerra ideológica, cultural, política, programática CONTRA O FASCISMO. 

Se o PT não entender isso, a vida vai ficar muito difícil. Não se derrota o fascismo sem ao menos opor a eles outra visão de mundo, outras ideias. Antirracismo, igualdade, feminismo, liberdade sexual, Estado forte. E mais, é preciso retomar uma nítida e orgulhosa defesa do socialismo como futuro da humanidade.  

O SOCIALISMO é a única alternativa concreta à distopia ultraliberal ao  atual  tecno-capitalismo-monopolista-imperialista-racista-sexista destruidor do meio-ambiente.

A atualidade do socialismo é concreta. O mundo piorou demais nos últimos 20 anos. Em qualquer critério que se possa selecionar para análise. Mais desigual, mais belicoso, mais quente, mais neoliberal, mais xenófobo, mais imperialista, mais feio, sujo e malvado.

Voltando ao nosso feijão com arroz. Sim, embora Haddad não seja um neoliberal de carteirinha carimbada (eu o classificaria num diapasão entre vaga social democracia moderada - com fortes pendores ao liberalismo progressista). Mas o fato é   que tem executado políticas monetaristas, contracionistas, fiscalistas, pró-mercado. A Faria Lima está em lua de mel com ele.

Haddad é um dos melhores quadros de nosso Partido. Tive o privilégio de ser seu coordenador LGBTI na prefeitura. As melhores e maiores políticas já feitas no setor, como o Transcidadania (a primeira política pública de promoção da cidadania de pessoas trans que elaborei a pedido do próprio Haddad. Isso para não mencionar os Braços Abertos, uma política avançadíssima, padrão europeu,  para enfrentar o problema do abuso de drogas e dos moradores de rua da região central paulista.

Fernando Haddad tem consistência intelectual, política. É corajoso, ousado, comprometido com Lula e com o PT (embora lhe falte vida partidária orgânica).  Suas gestões como Ministro da Educação e Prefeito de São Paulo deixaram fortes marcas, foram criativas, arrojadas. Figura oriunda das classes médias paulistanas, com formação intelectual densa, não é arrivista, não está na política por vaidade ou para acumular poder e dinheiro.

Isso posto, se equivoca muitas vezes por não ter a sensibilidade de dialogar com os movimentos sociais, nem o faro tático ou a experiência política que mandatos parlamentares lhe confeririam. 2013 talvez não houvesse. Era só baixar 0,20 a tarifa. Nosso intelectual é teimoso. A ética da convicção obnubila muitas vezes a ética da responsabilidade.

 Digo isso tudo porque a crítica pesada à atual política econômica não deve ser pessoal, contra o Ministro. Afinal, ele é apenas um qualificado funcionário do presidente. Demissível ad nutum. Muito menos a crítica deve ser focada em Lula.

Taticamente defendo que o PT e os movimentos sociais espanquem sem dó a política econômica, sobretudo destacando reinvindicações concretas: cadê as casas, as terras, os empregos, o fortalecimento das políticas sociais?

Lula quer, gosta e precisa dessa pressão. Para poder fazer o equilíbrio com o lado de lá. Temos que por gente na rua.  Não é contra Lula, mas a favor de outra política econômica. O melhor jeito de ajudar o governo é batendo sem dó nessa política econômica.

Governismo demais geralmente atrapalha os governos. Sem crítica, nada se move.

Voltando ao título do artigo. Se não houver uma mudança na correlação de forças entre o patronato e a peãozada, Lula terá pouca margem de manobra.

Para mudar a correlação de forças  entre as classes sociais um dos fatores fundamentais é, além de operar incessante luta política-cultural-ideológica-institucional,  colocar milhares, quem sabe milhões nas ruas.

Portanto, a principal tarefa do campo progressista é, as always, estimular a luta social.

 Mobilizações de todo tipo. Greves, ocupações, passeatas, luta acadêmica e cultural, batalha nas redes sociais. Fortalecer o PT, o PCdoB, o PSOL. Agregar povo. Colocar muita gente em movimento. Debater política.

Que nosso herói Lulão é humano, demasiadamente humano. Não faz milagres como o Jesus da mitologia cristã (embora muitos petistas creiam nisso). Nem tem o dom da imortalidade (embora haja controvérsias sobre a questão).

A inflação segue baixíssima: 0,24% em outubro. Projeção de 4,6% em 2023 e de 3,5% no ano que vem. (Também, ninguém gasta nada!). A trava imediata que impede o pais de deslanchar é a política  do  Banco Central, presidido pelo neto do Bob Fields. Pero, há mais gente responsável, infelizmente

São inaceitáveis as previsões de “crescimento” do PIB.  Só 3% esse ano e ridículos 2,2% ano que vem. No, no, no! Tem que girar isso agora.

Retomar o velho e bom desenvolvimentismo

O PT defende outra política econômica. Investimento público na veia. Gastos sociais. Afinal, não tem nada pior do que gente do lado de cá fazendo cosplay de funcionário padrão para os chefes do lado de lá. Seria carência? Insegurança? Busca por aceitação? Vaidade? Ou simplesmente falta de coluna vertebral?

Temos, a esquerda, diretrizes nítidas. Somos herdeiros de Celso Furtado, Caio Prado Jr, de Prebisch, de Maria da Conceição Tavares, de Keynes e de Marx, de Lenin e Rosa, de Bolívar, de Gramsci e Fidel, de Agostinho Neto, de Mao, de Pagu, de Malcolm X, de Chávez,  de  Evita!

Há, na atual conjuntura, uma fresta (pequena, reconheço) para Lula operar políticas de re-industrialização lastreadas em novos setores da economia. Estudar o que podemos produzir aqui, com vantagens comparativas. Temos cérebros, temos universidades, sabemos fazer. Já fizemos.  Sabemos da conexão biográfica-afetiva que Lula tem com o setor automobilístico, mas carro já deu, né?.

Por que não investir em metrô? Trens urbanos? Refazer nossas linhas ferroviárias de longa distância? Construção civil, sempre, porque gera emprego e movimenta uma grande cadeia produtiva. Por que não investir em aviões de novo? Sabemos fazer, já fizemos!

Vamos retomar a Embraer. Computadores e celulares. Tirar um pouco do nosso gigante atraso tecnológico. Temos que ter satélites próprios. Se os EUA quiser, ele desliga nossa internet em 2 minutos,  sabiam?. País que não tem tecnologia própria não é soberano, é parte da ralé do mundo. E pensar que tínhamos um programa pioneiro de produção de computadores nacionais nos anos 1980.  Química fina, remédios, complexo industrial da saúde. Carros elétricos, um plano nacional de desenvolvimento focado na transição energética.  Vamos parar de encher as indústrias automobilísticas de incentivos. Chega de carro.

Vamos fazer metrô, trens, ônibus. Alargar as vias urbanas.  100 milhões de brasileiros não têm rede de esgoto e 35 milhões não bebem água potável. Começar a resolver isso dará um enorme impulso à economia e melhora imediata e diretamente a vida dos mais pobres.

 Parcerias mais sólidas com a China; reforço intenso da relação com latino-américa. Reforma agrária. Reforma urbana. Muito dinheiro em mobilidade. Metrô! Reconstruir nossa malha ferroviária.  Gastos em infraestrutura, saneamento básico, metrôs, trens, estradas, ferrovias, moradias, hospitais, creches, escolas, universidades.

Gasto social e investimento público se revertem imediatamente em crescimento econômico. Ou seja, a arrecadação de impostos cresce e, portanto, a relação dívida/PIB melhora. Não há nenhum dado alarmante hoje. O mais chato é ter que aguentar aquelas chatinhas e rasas línguas de aluguel monotemáticas que monopolizam o noticiário econômico – em todas mídias.

Há tanto a fazer!  O momento é de apoiar/pressionar o governo Lula. Apoiá-lo contra a direita.   Pressioná-lo para que avance, gaste, faça política social, aumente o tamanho do Estado, ignore os conselhos monetaristas ortodoxos recuados do Ministro da Fazenda. Ou seja: que ignore a Globo News e pense no povão.

Mesmo destituído daqueles poderes mágicos e poções dos queridos Merlin e Dumbledore, Lula 3 (e 4) têm todas as condições para mudar estruturalmente o Brasil. Então, bora fazer nossa parte!