Desde que comecei a militar na moda sistematicamente, em 2017, um dos meus principais desafios tem sido estabelecer um diálogo sobre esse tema com o campo progressista a partir dos encontros do mundo fashion com a política.
Em geral, a impressão que as pessoas do campo político de esquerda têm da moda é de que se trata de um assunto banal, fútil, irrelevante. Claro que existem exceções, até para confirmar a regra.
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Moda vai além da frufru news e projeta um caleidoscópio da modernidade: comportamento, identidade, opressão, liberdade, gênero, religião, etnia, idade, saberes, nacionalidade, proteção, vulnerabilidade e luta de classes.
Moda é política
A moda está costurada com a política ao refletir a forma como nos comportamos e pensamos sobre a sociedade em que vivemos.
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É exatamente o caráter político da moda que desencadeou a treta em torno da participação da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) na principal semana de moda brasileira, a São Paulo Fashion Week (SPFW).
A polêmica começou com um vídeo que a parlamentar gravou para o perfil da revista Harper's Bazaar Brasil no Instagram.
Quem disse que moda e política não andam juntas está completamente, redondamente equivocada, enganadíssima. A gente tem que parar de achar que política é uma coisa que tem que ficar lá segmentada, isolada. Tudo é político. Estar aqui é político.
O desfile do qual participou a deputada ocorreu na última sexta-feira (10) e ela passou pela passarela com peças da marca Led, fundada pelo designer Célio Dias em 2013.
De acordo com o site da marca, a Led enxerga a moda como catalisador de mudança e produz peças que carregam um peso político, de resistência e subversivo. A marca agênero desfila desde 2017 como convidada da SPFW.
(Abro um parênteses para explicar, de modo rápido, o que é moda agênero e antecipo que em breve escrevo um texto com foco nesse tema. Moda agênero, também conhecida como moda sem gênero ou unissex, refere-se a um estilo de vestimenta que não se enquadra nas tradicionais categorizações de moda masculina ou feminina. Esse conceito desafia as normas convencionais de gênero na moda, propondo peças de vestuário que podem ser usadas por qualquer pessoa, independentemente do seu gênero.)
Diante do bafafá desencadeado pelo vídeo, Erika foi às redes para ampliar o debate sobre sua declaração da moda ser política.
SPFW ?
A moda e a indústria têxtil empregam 10 milhões de pessoas, direta e indiretamente, no Brasil.
E é um setor ainda cheio de problemáticas, como disparidade salarial entre homens e mulheres, trabalho análogo à escravidão e exploração de pessoas negras.
A moda é política.… pic.twitter.com/OYvbqhYGi0 — ERIKA HILTON (@ErikakHilton) November 13, 2023
Ninguém anda pelado
Ninguém anda pelado na sociedade contemporânea. Exceto grupos indígenas isolados e comunidades nudistas. O fato é que a vestimenta é uma necessidade básica do ser humano e serve para proteger do calor e do frio.
Mesmo que a roupa que nos veste seja algo básico, relacionado à nossa subsistência, a história das vestimentas e da moda (que tem um conceito próprio além do vestir e que explico mais adiante neste texto) esses panos que nos cobrem são, como via de regra, considerados bobagens.
A história da humanidade é sempre contada a partir da luta pelas necessidades de sobrevivência, igualdade, liberdade, segurança e autodeterminação. Nunca pelos luxos e frivolidades, que é a caixinha na qual a moda e as vestimentas estão guardadas no debate público.
O gosto pela novidade e pela surpresa, ou a beleza de uma cor ou textura, aspectos do cotidiano no qual a moda está inserida, também conta a história dos seres humanos. Figurinos e vestimentas impulsionam inovações tecnológicas desde o começo da existência humana.
Tesouras, agulhas de costura e raspadeiras para converter peles de animais em proteção para o corpo estão entre as mais antigas ferramentas resgatadas da era paleolítica. Essa quantidade de inovações tecnológicas ter surgido a partir da produção têxtil pode indicar invenções por necessidade. Mas os registros arqueológicos estão repletos de ferramentas para fins decorativos e mostram que os humanos começaram a fabricar joias assim que passaram a produzir ferramentas.
Moda é mais do que roupa
A moda vai além da vestimenta e só existe no modo de produção capitalista. Moda e política desfilam juntas pela História desde os primórdios do capitalismo.
A moda nasceu ainda durante a Idade Média, no período Mercantilista, das Grandes Navegações, e fundamentou as condições necessárias para a hegemonia da burguesia e do Grande Capital.
Em sua gênese, o primeiro ato da moda foi estabelecer gênero para as peças de roupas. Depois de séculos em que homens e mulheres usaram a mesma toga flutuante, um tipo de vestido largo e meio hippie, a sociedade resolveu estipular vestimenta de acordo com o sexo. Pelo menos para as classes sociais privilegiadas, os nobres e a nascente burguesia mercantil.
Durante essa jornada de transformação do modo de produção, a moda sempre esteve em sintonia com as mudanças do Capitalismo. Por exemplo, só foi possível dar o impulso inicial para a realizar a primeira Revolução Industrial por que houve o sequestro e escravização de pessoas pretas do continente africano para cultivar algodão nas colônias das Américas.
Nesse o primeiro giro da Revolução Industrial, o algodão cultivado por pessoas pretas escravizadas revolucionou o modo artesanal de fazer roupas. Graças ao carvão como energia e ao tear como modo mecânico de produção, além do escravagismo e do colonialismo. Nascia o sistema de moda como o conhecemos. Tecer os fios que nos vestem é um ícone do sistema capitalista.
Moda e luta de classes
Em A Ideologia Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels, pais da teoria marxiana, a tecelagem é exemplo da capacidade do capitalismo de se apropriar das necessidades humanas. Anteriormente exercida por camponeses para prover o próprio vestuário, foi o primeiro trabalho a receber impulso e evoluir com a expansão do intercâmbio do mundo capitalista.
Marx e Engels também abordam a capacidade que a indústria têxtil teve para se adaptar às mudanças do modo de produção.
Foi o trabalho que desde o início pressupôs uma máquina, que ainda que na mais tosca das formas, que muito rapidamente se mostrou o mais capaz de desenvolvimento.
A tecelagem foi a primeira, e permaneceu a principal, manufatura. A população crescia junto com a busca por tecidos para o vestuário. Era o início da acumulação e mobilização do capital dessa indústria nascente. A moda – o guarda-chuva que abrange a tecelagem – prosperava junto com o capitalismo com a circulação acelerada, a necessidade do luxo e a expansão do intercâmbio.
[Esse cenário deu à] tecelagem, quantitativa e qualitativamente, um impulso que a arrancou da forma de produção precedente. A par dos camponeses que teciam para uso próprio, os quais continuaram e ainda continuam a existir, surge nas cidades uma nova classe de tecelões cujos tecidos se destinavam a todo o mercado interno e, as mais das vezes, também a mercados estrangeiros.
Moda e revolução
O chão de fábrica da indústria da moda também está presente no mito da fundação do Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março e que é fruto da luta de classes. Reza a lenda que, em 1857, 129 operárias têxteis morreram depois de os patrões terem incendiado a fábrica ocupada, em Nova Iorque (EUA). Elas protestavam por aumento de salário e jornada de 12 horas diárias.
Três fatos históricos distintos deram origem a esse mito fundador: dois ocorridos no capitalista Estados Unidos da América (EUA) e um na socialista Rússia, antes da criação da hoje extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
O primeiro, em Nova Iorque, foi uma longa greve de costureiras, que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910.
O segundo, na mesma cidade, em 1911, ocorreu quando uma fábrica de tecidos chamada Triangle Shirtwaist Factory (Companhia de Blusas Triângulo) pegou fogo em decorrência das péssimas condições de segurança do local, matando 146 pessoas. Dentre os mortos, 129 eram mulheres – 90 delas se jogaram pelas janelas do prédio.
O terceiro fato histórico que deu origem ao mito foi a greve de tecelãs e costureiras de Petrogrado (atual São Petersburgo), na Rússia, em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial. Naquele 23 de fevereiro, no calendário russo (8 de março no ocidental), as socialistas celebraram o seu primeiro Dia da Mulher.
Um grande número de mulheres operárias do setor de tecelagem e costura saiu às ruas em manifestação por pão e paz. Elas bateram de frente com a decisão dos líderes bolcheviques, que consideraram o movimento inoportuno.
A greve de tecelãs e costureiras foi o estopim para a primeira fase da Revolução Russa, a Revolução de Fevereiro. Em outubro, o Partido Bolchevique liderou a grande Revolução Russa ao longo de dez dias que abalaram o mundo.
O episódio foi documentado em escritos dos líderes bolcheviques Alexandra Kollontai e Leon Trotsky, que dedica um longo trecho ao registro no primeiro volume de seu livro História da Revolução Russa.
O dia das operárias, 8 de Março, foi uma data memorável na história. Nesse dia, as mulheres russas levantaram a tocha da revolução.
Alexandra Kollontai
…contra todas as orientações, as operárias têxteis abandonaram o trabalho em várias fábricas e enviaram delegadas aos metalúrgicos para pedir-lhes que apoiassem a greve.
Leon Trotsky
Ampliar o olhar sobre moda
Diante desse fenômeno no qual o campo progressista ignora a potência da moda, troquei uma ideia com André do Val, jornalista de moda que produz conteúdo interessante no perfil dele no Instagram. Para ele, uma parte do público, de fato, tem contato da moda por meio do que eu chamo de frufru news que é sintetizado pelo consumo de moda.
As pessoas precisam ter um olhar mais aprofundado e observar a moda como comunicação e comportamento.
Nessa tarefa de aprofundar as nossas trocas sobre moda é importante bater na tecla que de moda e política têm tudo a ver. Cito três exemplos que estão na Agenda Legislativa da Moda Ética, lançada pelo Fashion Revolution Brasil durante a Semana Fashion Revolution de 2022.
A agenda traz três propostas diretamente relacionadas à cadeia produtiva da moda e que estão em discussão no ambiente da política: é contrária ao Pacote do Veneno; favorável ao PL do Cânhamo e defende a regulamentação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos para enquadrar a indústria da moda.
Pessoas progressistas, vamos debater a moda com a seriedade que essa potência exige e para além das futilidade. Moda vai além das roupas e é também política.