IARA VIDAL
Quando Fidel Castro decidiu aparecer em público pela primeira vez em 35 anos sem sua habitual veste militar verde-oliva, em 1994, durante a 4ª Cúpula Iberoamericana em Cartagena das Índias, na Colômbia, usou uma guayabera branca de manga comprida combinada com calças azuis. A guayabera, uma camisa de algodão ou linho caracterizada pelos quatro bolsos e faixas pregueadas verticais, havia sido exigida pela primeira vez aos chefes de Estado como traje oficial do evento. Desde então, sempre que a Cúpula cai num país tropical, a guayabera é adotada.
Fidel: "Diziam por aí que eu andava com um colete à prova de balas, mas não, meu colete é a moral! E pus a guayabera. E o bonito da guayabera é que todo mundo me elogiou. Eu mesmo não sabia como ia ficar. ‘Como ficará esta barba com uma guayabera branca?’"
Fidel contou na época, com senso de humor, sobre sua resistência em trocar o uniforme militar pela guayabera. "Solicitaram de todos os visitantes que viessem de guayabera, em mangas de camisa. E eu fiquei com um problema, porque tenho meus velhos costumes. Mas o que fazer com os anfitriões? Antes iam de terno, em Guadalajara, Madri… E eu com minha roupa de sempre. É a roupa com a qual estava nas montanhas, eu gosto, é minha roupa. E é muito cômodo, não tenho que andar de acordo com a moda, com os estilos", brincou.
"Mas alguns criticavam, querendo me pintar de militarista, estas coisas. Ao fim e ao cabo, eu queria demonstrar que não tinha medo de colocar uma guayabera. Diziam por aí que eu andava com um colete à prova de balas, mas não, meu colete é a moral! E pus a guayabera. E o bonito da guayabera é que todo mundo me elogiou. Eu mesmo não sabia como ia ficar. 'Como ficará esta barba com uma guayabera branca?' Mas eu volto ao uniforme. Os militares tratam a pessoa melhor quando está de uniforme do que de guayabera…"
Durante um dos últimos encontros entre Lula e Fidel, ambos vestiam o traje típico, muito embora após a aposentadoria o líder cubano tenha trocado de vez o uniforme de comandante não pela guayabera, mas pelos agasalhos esportivos de marca: Adidas, Nike, Puma e Fila –o que lhe rendeu não poucas críticas de que havia se rendido ao capitalismo… A peça foi usada pelo presidente Lula em diversas oportunidades durante o seu governo e em muitas das cúpulas das Américas que participou.
A guayabera é um exemplo de outfit repleto de simbologia política, com forte conotação esquerdista e signo da integração da América Latina. Não há certeza sobre as origens da camisa, e sua criação é disputada pelo México, República Dominicana, Cuba e até pelas Filipinas. O que se sabe é que a guayabera existe desde pelo menos o século 18, e que está mais ligada à tropicalidade do que à ideologia. Não precisa ser de esquerda para usar o icônico modelo.
Não há certeza sobre as origens da camisa, e sua criação é disputada pelo México, República Dominicana, Cuba e até pelas Filipinas. O que se sabe é que a guayabera existe desde pelo menos o século 18, e que está mais ligada à tropicalidade do que à ideologia
Em 2018, durante a assinatura de acordo entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico, Michel Temer e outros líderes usaram a guayabera, que é considerada formal e comum em cúpulas em países muito quentes. Presidentes dos EUA já a usaram, como Ronald Reagan, republicano, e Jimmy Carter, democrata.
O escritor Gabriel García Márquez, de esquerda, vestiu uma guayabera de gola Mao para receber o Prêmio Nobel, em 1982. Seu rival e também Nobel de Literatura, o liberal Mario Vargas Llosa, foi de fraque e gravata borboleta branca em 2010, mas já usou guayabera em eventos públicos em inúmeras outras ocasiões. Durante suas longas temporadas em Cuba, Ernest Hemingway também a vestia diariamente, como um uniforme.
Moda e política desfilam juntas pela História desde os primórdios do sistema capitalista. A moda nasceu ainda durante a Idade Média, no período Mercantilista, das Grandes Navegações, e fundamentou as condições necessárias para a hegemonia da burguesia e do Grande Capital. Em sua gênese, o primeiro ato da moda foi estabelecer gênero para as peças de roupas. Depois de séculos em que homens e mulheres usaram a mesma toga flutuante, um tipo de vestido largo e meio hippie, a sociedade resolveu estipular vestimenta de acordo com o sexo. Pelo menos para as classes sociais privilegiadas, os nobres e a nascente burguesia mercantil.
Essa revolução do vestuário lançou as bases do trajar moderno. A primeira tendência da recém-nascida moda fez com que homens passassem a usar uma jaqueta curta e estreita, o gibão, combinada com calções colantes, uma espécie de legging. Todos de pernocas torneadas de fora para realçar a própria virilidade. Na época de Henrique VIII, no final do século 15, estava em alta calções extremamente curtos. Os caras precisavam cobrir melhor as partes íntimas e usavam o codpiece, uma espécie de pochete peniana fechada com barbantes e/ou botões.
Já as mulheres passaram a usar vestidos que exaltavam atributos de feminilidade (leia-se maternidade): o traje alonga o corpo com a cauda, destaca o busto, os quadris, a curva das ancas. As moçoilas costumavam destacar os próprios ventres, simulando o volume de uma gestação, e para isso colocavam saquinhos proeminentes escondidos sob o vestido. Esse outfit medieval foi registrado por Jan Van Eyck no quadro O Casal Arnolfini, em1434.
A história da humanidade é sempre contada a partir da luta pelas necessidades de sobrevivência, igualdade, liberdade, segurança e autodeterminação. Nunca pelos luxos e frivolidades, como o gosto pela novidade e pela surpresa, ou a beleza de uma cor ou textura, aspectos do cotidiano no qual a moda está inserida. Ainda assim, figurinos e vestimentas impulsionam inovações tecnológicas desde o começo da existência humana.
Tesouras, agulhas de costura e raspadeiras para converter peles de animais em proteção para o corpo estão entre as mais antigas ferramentas resgatadas da era paleolítica. Essa quantidade de inovações tecnológicas ter surgido a partir da produção têxtil pode indicar invenções por necessidade. Mas os registros arqueológicos estão repletos de ferramentas para fins decorativos e mostram que os humanos começaram a fabricar joias assim que passaram a produzir ferramentas.
Figurinos e vestimentas impulsionam inovações tecnológicas desde o começo da existência humana. Tesouras, agulhas de costura e raspadeiras para converter peles de animais em proteção para o corpo estão entre as mais antigas ferramentas resgatadas da era paleolítica
Em O Poder Inovador da Diversão, o escritor Steven Johnson, considerado um dos mais importantes pensadores da história da tecnologia, recria a trajetória do entretenimento e dos passatempos que os seres humanos criaram para se divertir e sobreviver à dura luta cotidiana pela vida: moda e consumo aparecem ao lado de jogos de azar, instrumentos musicais, ilusionismo e comidas exóticas. Uma das experiências humanas narradas é com o caramujo murex, que habita as águas rasas e piscinas de maré ao longo da costa do Mediterrâneo e as praias do Atlântico, desde Portugal até o Saara. Dele é extraído o pigmento púrpura, um produto de grande valor na Antiguidade. A cor não desbota, ao contrário, se torna gradualmente mais brilhante e intensa com a exposição ao tempo e à luz do sol.
Era um item caro e transformou os produtos têxteis nos quais era utilizado em símbolos de status e poder. Havia até leis que ditavam quem poderia ou não usar indumentárias dessa cor, reservada apenas aos poderosos. Na Roma Antiga, apenas o Imperador podia vestir o símbolo do governo, uma capa de púrpura tíria costurada com linha de ouro, enquanto os senadores romanos eram os únicos que podiam usar uma faixa de púrpura tíria nas togas. No Império Bizantino, tornou-se a cor imperial usada pelos governantes. Também era a tonalidade do Sacro Império Romano e, mais tarde, pelos bispos católicos romanos. No Japão, a cor é tradicionalmente associada ao imperador e à aristocracia.
A técnica de extração do pigmento foi dominada e massificada pelos fenícios. Tanto que a cor passou a ser conhecida pelo nome da cidade em que ocorria a extração em larga escala, Tiro. A cidade abrigava o principal porto marítimo da antiga Fenícia, no território conhecido atualmente como Líbano. Um dia, o suprimento de caracóis do Mediterrâneo deixou de ser o bastante para produzir a púrpura do Tiro. Marinheiros fenícios se lançaram ao mar para explorar lugares nunca navegados e enfrentaram as grande ondas e os mares não mapeados até a costa do norte da África. Essa aventura foi a chave que abriu o oceano Atlântico.
Graças a uma simples cor, a humanidade iniciou a jornada marítima em busca de ouro, de liberdade religiosa e de conquistas militares. Independente do resultado da combinação entre o frívolo e o prático que possibilitou a criação dos primeiros figurinos humanos, a invenção da púrpura de Tiro sinaliza que a beleza e o encantamento por uma tonalidade mudou o mundo para sempre. Ninguém precisa de cor, não tem utilidade médica, não alimenta nem protege. Ainda assim, foi o ponto de partida para uma aventura que nos trouxe até aqui.
Filha predileta do capitalismo, a moda é constantemente alimentada pela força poderosa do desejo e reúne todos os atributos para prosperar o Grande Capital: culto a fantasias e novidades, instabilidade, temporalidade e efemeridade. Durante essa jornada de transformação do modo de produção, sincronizada com as mudanças do Capitalismo, a moda projeta um caleidoscópio da modernidade: comportamento, identidade, opressão, liberdade, gênero, religião, etnia, idade, saberes, nacionalidade, proteção, vulnerabilidade e luta de classes. A moda está costurada com a política ao refletir a forma como nos comportamos e pensamos sobre a sociedade em que vivemos.