Moda antirracista. Como essa ideia potente e necessária pode driblar o risco de virar apenas um nicho de mercado e, de fato, propor reflexões e, quem sabe, mudanças na estrutura da indústria da moda?
Antes de mais nada, para começar a trocar ideias sobre esse tema tão complexo quanto o racismo estrutural, precisamos ligar o nosso GPS. Uma moda antirracista tem que conversar com a realidade que nos cerca.
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No caso brasileiro, compreender a nossa formação social, nossa herança escravagista e colonial, é o pano de fundo e histórico para essa conversa.
A indústria da moda foi costurada pelo fio do algodão cultivado por pessoas pretas escravizadas nas colônias das Américas, em especial nos Estados Unidos, mas também aqui no Brasil.
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Graças às fábricas têxteis da Inglaterra do início do século XX as roupas tecidas com a fibra cultivada por pessoas pretas escravizadas por mãos de crianças e mulheres em péssimas condições de trabalho deram o primeiro empurrão para a Revolução Industrial.
O tear, a energia a vapor, o escravagismo, a mão-de-obra barata de mulheres e crianças e o colonialismo em torno do fio do algodão mudaram o mundo para sempre.
O racismo e a exploração está no DNA da moda.
O que pensam as manas?
Então, o que é afinal, moda antirracista? Perguntei às minhas amigas pretas qual a primeira coisa que veio à cabeça delas ao se deparar com essa expressão.
A Mariane Del Rei, a Mari, é jornalista e escritora e coautora do livro Tinha que ser preto. Ela enxerga três alicerces da moda antirracista.
1. Não estereotipar as peças étnicas e as pessoas que usam essas peças.
Quando se pensa nos países de África, já imaginam peças com pele de animais, dentes de marfim etc. E a moda no continente africano vai muito além disso.
2. Igualdade racial nos espaços de poder dentro da indústria da moda.
Que o povo negro não ocupe somente os lugares de mão-de-obra, mas sim, também sejam líderes dentro da indústria têxtil, tenham espaços para criar, estilizar etc.
3. Brancos aliados
Que os designers e estilistas brancos sejam aliados à causa antirracista e não se apropriem da nossa cultura, usufruindo da nossa resistência cultural e esvaziando o sentido de símbolos sagrados e das vestes ritualísticas e tradicionais do povo negro para ganhar dinheiro, e assim, sustentar o capitalismo.
A roupa da quebrada
A também jornalista Rebeca Motta, apresentadora do Fórum Café, aponta um outro aspecto para tentar formular um conceito do que é moda antirracista: o território.
Eu vejo principalmente a juventude aqui da quebrada, que é majoritariamente preta, tomando para si a valorização desses símbolos que são da quebrada que por muito tempo foram marginalizados.
Ela também comenta o aspecto estético da moda antirracista, com formas geométricas e motivos étnicos que remetem ao continente africano. Rebeca ressalta ainda o estilo de roupa usado pelos jovens da quebrada: short, camiseta esportiva, vestidos, moletons...
Porque eu vejo muito uma galera dentro da quebrada criando realmente suas próprias marcas de roupa, seus modelos, se inspirando também em outras fontes que não seja essa indústria europeia da moda, uma moda elitista, minimalista, mas que de fato reforce a cultura negra, a cultura de rua, a cultura periférica também.
Luta de classes
Outra amiga e jornalista preta, a Maria Frô, que apresenta o Fórum Sindical, comenta que considera moda antirracista "colorida, linda que melhora a estética do mundo tão feio e cinza".
É também ver mulheres pretas estilistas produzindo moda, trabalhando, criando e absorvendo um pouco da riqueza desta indústria que historicamente é muito excludente. Por fim, consumir moda de costureiras negras é também contribuir para o meio ambiente, tenho várias bolsas acessórios de material reciclado. Moda antirracista é fazer a luta de classes
Chega de estereótipos
A servidora pública Juliana Meneses comenta que uma moda antirracista precisa fugir dos estereótipos com os quais estamos acostumados principalmente nos padrões estéticos de modelos. Embora tenha mudado nos últimos anos, ainda é comum em nos deparar com desfiles ou campanhas inspiradas na moda africana com modelos brancas.
Penso que moda antirracista tem que ter pluralidade de modelos de diferentes etnias, inspiração em diferentes culturas, produtores , estilistas, donos de lojas etc. de várias etnias também.
Busca por igualdade racial
Durante as manifestações que tomaram conta das ruas mundo afora, em 2020, sob as palavras #BlackLivesMatter, aqui no Brasil, #VidasNegrasImportam. A moda não passou incólume.
Durante a Semana Fashion Revolution 2020, no calor da onda antirracista, os debates deixaram evidente a necessidade de compreender e articular ações voltadas para a pauta e a agenda racial na moda. Daí nasceu o Comitê Racial do Fashion Revolution Brasil. O grupo é composto por pessoas que fazem parte do movimento ativista de norte a sul do Brasil.
O grupo atua como fórum consultivo do Fashion Revolution e está estruturado em torno de espaços de estudo, ação e fortalecimento de capacidades dos participantes para a transversalidade do tema da equidade racial.
As ações do comitê incluem – mas não se restringem – a ações e campanhas internas para aumentar o engajamento na agenda antirracista e promover relações etnicorraciais saudáveis.
Uma das integrantes é Ana Fernanda, que mora em Salvador (BA). Ela pontua elementos muito similares aos elencados pela Mari:
1. Valorizar pessoas pretas em lugares de criação
O antirracismo aí seria a afirmação de novos lugares para pessoas pretas.
2. Usar, ressignificar e se inspirar em manifestações de África
Essa expressões, tidas como "feias", "perigosas", "sujas", "cafonas", ganham um novo olhar, passam a ser vistas com a dignidade que têm.
2. Incentivar projetos que promovem o trabalho, emprego e renda para profissionais pretas e pretos a partir da moda
Em Salvador temos o Mercado Iaô, não é exclusivo sobre moda, mas tem um destaque importante.
Moda afro-brasileira
A desenhista industrial e pesquisadora Maria do Carmo Paulino dos Santos lança um olhar crítico sobre a moda afro-brasileira como forma de resistência e expressão política no Brasil.
Em sua jornada, lidou com estigmas do mercado de trabalho e encontrou força no Orgulho Crespo, levando-a a conceituar "moda afro-brasileira" em seus estudos e negócios.
Ela é autora da primeira dissertação da Universidade de São Paulo (USP) sobre o tema que acabou virando o livro Moda afro-brasileira é design de resistência da luta negra no Brasil.
Maria do Carmo define assim moda antirracista:
Moda antirracista é uma moda política que comunica/expressa discursos contra o racismo. É uma moda que coloca em cena a valorização da cultura e da estética negra. É uma moda que revisita o passado da ancestralidade negra a partir da diáspora africana para materializar seus símbolos em elementos visuais e vestível
Além das roupas
Depois de ouvir minhas manas pretas sobre moda antirracista, fica difícil elaborar um conceito único do que seja esse ramo da indústria da moda. Mas é certo que tem o dever ético e moral de combater o racismo e promover a igualdade racial.
Essa moda está baseada na ideia de decolonização, de transformar nossos olhares para as expressões estéticas da população preta e deixar de lado a ideia de que apenas o que é da cultura de brancos seja belo.
Além disso, uma moda antirracista deve desconstruir estereótipos raciais, preconceitos ou discriminação e ser ser inclusiva, diversificada e respeitosa com todas as culturas e grupos étnicos.
Em resumo, alguns aspectos-chave da moda antirracista:
Representação inclusiva: A moda antirracista busca representar diversas culturas e grupos étnicos em todos os aspectos da indústria da moda, desde desfiles de moda até campanhas publicitárias e modelos de passarela. Isso significa dar oportunidades a modelos e designers de todas as origens raciais.
Reconhecimento da apropriação cultural: A moda antirracista enfatiza a importância de reconhecer e respeitar as influências culturais, evitando a apropriação cultural, que ocorre quando elementos culturais de uma comunidade são usados de maneira insensível ou sem autorização por pessoas de outra cultura.
Educação e conscientização: A indústria da moda antirracista promove a educação e a conscientização sobre questões raciais, tanto dentro da própria indústria quanto entre os consumidores. Isso inclui aprender sobre a história das roupas e tradições culturais, bem como a história das lutas e desafios enfrentados por pessoas de diferentes grupos étnicos.
Colaboração e apoio à comunidade: Marcas e designers que adotam uma abordagem antirracista frequentemente colaboram com comunidades e organizações locais para promover a igualdade racial e apoiar iniciativas que beneficiam grupos minoritários.
Inclusão de vozes diversas: A moda antirracista valoriza as vozes e perspectivas diversas em todos os níveis da indústria, desde a criação de peças de roupa até a tomada de decisões executivas.
Transparência e responsabilidade: Marcas que aderem à moda antirracista são frequentemente transparentes sobre suas políticas, práticas e esforços para combater o racismo. Elas também se responsabilizam por eventuais erros ou insensibilidades.