Todo ato de violência deve ser capaz de gerar em nós um sentimento de consternação, caso contrário, há um indicativo de que estamos perdendo nossa humanidade e, portanto, caminhando rumo à barbárie. Lamento e repudio veementemente os ataques e os assassinatos brutais de civis israelenses pelo Hamas, um grupo que não representa o conjunto da população palestina. E, na mesma proporção, lamento e repudio o que está acontecendo com os civis palestinos que estão sendo sistematicamente atacados e mortos, pois indignação seletiva não é indignação, é fantasia de onipotência narcísica que não dá conta do reconhecimento da dor e do direito de existir do outro.
Chimamanda Ngozi, no livro “O perigo da história única”, diz:
“É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra da tribo Igbo (...) 'nkali'. É um substantivo que livremente se traduz: 'ser maior do que o outro'. Como nossos mundos econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do 'nkali'. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.”
Então, quem conta a história dos invisíveis?
Estive na Palestina em janeiro de 2020 e fiquei em campos de refugiados de pessoas que foram forçadas a abandonar suas casas com a ocupação israelense que deixou mais de 750 mil palestinos refugiados e 15 mil mortos. Lá, conheci Aya, Ahlam, Ibrahem e toda sua família, também Yumna, Mohammad e outros palestinos, muçulmanos e cristãos, convivendo pacificamente, que me abriram suas casas e suas histórias de vida.
Yumna foi a primeira pessoa com quem tive contato logo que cheguei em solo palestino. Nossa primeira conversa foi sobre a necessidade de poupar água, artigo de luxo para os palestinos, já que Israel controla praticamente todas as fontes de água potável da Cisjordânia, e de Gaza, e promove cortes dramáticos no abastecimento. Segundo a Anistia Internacional, apenas 20% de toda a água do território palestino é reservada para a sua população. De um lado, enquanto falta água para beber, do outro vê-se até piscinas olímpicas cheias, eu vi.
Ela me conta que é muçulmana nascida nos EUA e que seu maior medo é nunca mais poder ver seu marido, que é palestino, pois, ele não tem permissão para sair da Palestina e ela não sabe se seu visto será renovado por Israel. Palestinos não possuem passaporte próprio, como se vivessem em uma jaula geográfica, para chegar até lá é preciso passar pelo controle de Israel, que é quem decide quem pode entrar ou sair das suas próprias terras, a palavra é “sufocamento”.
A Palestina possui hoje apenas 10% do seu território original, e, a cada ano, novos assentamentos israelenses são construídos, só no campo de refugiados de Jenin, perto da capital Ramallah, há cerca de 14 mil pessoas vivendo em menos de meio quilômetro quadrado.
Já na casa de Aya e Ibrahem, conheci Ahlam, tia de Aya e, hoje, presidente de uma ONG pelos direitos das mulheres muçulmanas. Ela, quando criança, foi presa por atirar uma pedra em um policial israelense, passando anos na prisão por isso, o que é algo bastante comum por lá, crianças presas em sua maioria por suspeita de atirar pedras na polícia, ato que pode levá-las a até 20 anos de cadeia. Segundo a organização Defence for Children International (DCI), anualmente, entre 500 e 700 crianças da Cisjordânia são presas e julgadas por tribunais militares israelenses e são inúmeras as denúncias de tortura física e psicológica e até de execuções.
Lembro que, além do que experenciei na Palestina, uma cena que vivi em Jerusalém ocidental me marcou muito: dois adolescentes, uma menina e um menino, sentados num café, cada um com o seu sorvete e fuzil. Eram jovens militares, Israel está repleto deles, em todos os lugares para onde eu olhava via meninas e meninos carregando livros, mochilas, sacolas de compras, celulares e, sempre, o fuzil.
Me entristece pensar que estes jovens devem viver em constante estado de tensão, de medo, sem nunca poder desfrutar da paz. Me entristece atestar que o ódio é um projeto político, pois não se nasce odiando, se ensina a odiar. E, a quem interessa propagar o ódio, a guerra e a desumanização? Não ao Ibrahem, Yumna, Ahlam, nem aos jovens e crianças judeus com seus sorvetes e fuzis, muito menos as crianças e jovens palestinos. Quem lucra com o ódio e a guerra são os senhores do poder, o “nkali” que bem lembrou Chimamanda, os mesmos que contam para o mundo uma história que divide, desumaniza e torna inimigos pessoas que nunca se conheceram. Contar, portanto, a história dos invisíveis é a possibilidade de escrever um outro final.
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