Com a proliferação das redes sociais, os críticos a tudo o que é publicado passaram a surgir aos borbotões. “Por que vocês dão palco para isso? Por que vocês falam sobre aquilo?” e por aí vai. É como se a realidade, que muitas vezes é terrivelmente incômoda, tivesse que ser ignorada.
A matéria-prima do jornalismo é a vida como ela é. Repórteres, escritores, documentaristas e congêneres vivem de dar luz a ela. E, invariavelmente, são acusados de explorar a desgraça alheia entre outras sandices.
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Divulgar os fatos, por piores que sejam, serve, sobretudo, de alerta para que não mais se repitam. O mesmo tem ocorrido, entre outros assuntos, com a série "Todo Dia a Mesma Noite", obra de ficção da Netflix que retrata o incêndio da Boate Kiss, ocorrido na madrugada de 27 de janeiro de 2013.
A obra é inspirada no livro homônimo de Daniela Arbex. Sobre ele, tenho um testemunho incomum. Assim que foi lançado, em janeiro de 2018, comecei a ler os primeiros parágrafos em uma livraria e só consegui acabar horas depois, em casa, totalmente hipnotizado pela força do texto e a completa compreensão de todo o drama.
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Daniela Arbex consegue com maestria e rara sensibilidade nos colocar dentro da trama e, principalmente, da dor de todos os envolvidos. Seu livro talvez seja o maior e mais completo documento que envolve a tragédia.
Pra que serve?
“Mas para que serve isto?”, perguntam os incautos. Explico. Fui dono de casa noturna, que viveu por muitos anos seguidos apinhada, assim como a Boate Kiss. Certa vez, alguém, por pura diversão, soltou um sinalizador de naufrágio em uma noite particularmente cheia. Uma fumaça espessa apavorou a todos e começou uma correria. Esvaziamos o local em minutos, escancarando todas as saídas de emergência. Perdemos toda o faturamento do dia, mas ninguém sofreu nem um arranhão sequer.
Anos depois, quando ocorreu a tragédia da Boate Kiss, a Prefeitura de Santos, cidade onde vivo, e muitas outras de vários locais, passaram a tomar rigorosos cuidados com o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). O fato, óbvio, é que a morte daqueles 242 jovens e outros 636 que ficaram feridos e a ampla e detalhada divulgação dos acontecimentos, serviram, por pior que seja, para que a vida de inúmeras pessoas tenha sido preservada.
A luta pela Justiça
A série da Netflix se concentra na luta pela Justiça, o calvário das famílias para julgar e punir os responsáveis pelas mortes de seus entes queridos.
A ampla divulgação de crimes, injustiças e, consequentemente, seus praticantes, são vitais para que eles não mais aconteçam. Em outros tempos, teríamos, por exemplo, tomado um golpe de Estado no último dia 8 de janeiro, quando terroristas invadiram os Palácios dos Três Poderes, em Brasília, não fosse a ampla divulgação e indignação da maior parte dos meios de comunicação.
Como bem disse Julia Rezende, diretora-geral de 'Todo Dia a Mesma Noite', em entrevista ao UOL, “o audiovisual mundial foi construído a partir de acontecimentos reais. De Titanic ao World Trade Center, a dezenas de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial”.
E completa: "o que a gente está fazendo aqui é dar voz a esse acontecimento, não deixar cair no esquecimento. Acho que a gente precisa que as pessoas saibam do que aconteceu ali. Famílias foram processadas pelo Ministério Público. Isso é um acontecimento inacreditável, e ninguém sabe."
Do fundo da nossa bondade infinita, achamos melhor não ver imagens como as dos Yanomamis famélicos que foram amplamente divulgadas na última semana.
Mas foram exatamente elas que provocaram uma ampla ação mundial em defesa daquele povo esquecido.