SEMIÓTICA

Massacre de Bucha repete não-acontecimento dos 'Ossários de Timisoara' de 1989 – Por Wilson Ferreira

Todo o hype atual em torno das fake news parece ocultar algo mais pernicioso: os não-acontecimentos – eventos em que a informação se confunde com a fonte, tornando sem sentido a diferença entre verdade e mentira

Créditos: Edição de imagens.
Escrito en OPINIÃO el

Todo o hype atual em torno das fake news parece ocultar algo mais pernicioso: os não-acontecimentos – eventos em que a informação se confunde com a fonte, tornando sem sentido a diferença entre verdade e mentira. Os “Ossários de Timisoara”, 1989, escândalo das imagens de centenas de mortos, montadas para a necrofilia televisiva e que levou ao desfecho da Revolução Romena, foi a mãe de todos os modernos não-acontecimentos, das guerras às revoluções híbridas. O “Massacre de Bucha” é mais uma não-acontecimento, com o seu timing, inconsistências, canastrice ficcional e, como sempre, um evento cuja verossimilhança não resiste a uma simples pergunta: quem ganha?

 

Dessa vez o ator-comediante-presidente Volodymyr Zelensky foi longe: abandonou o fundo verde do croma-key da produção de vídeos cuidadosamente editados (clique aqui), de cujo estúdio aciona diariamente gatilhos cognitivos que tornem uma eventual Terceira Guerra Mundial um destino aceitável, para ser filmado nas ruas de Bucha, a 37 km a sudoeste da capital Kiev. 

Trajando um colete a prova de balas (nem era necessário, já que os russos já tinham abandonado a cidade em 30 de março – porém, como de hábito, os seus vídeos devem ser carregados de drama e canastrice, mesmo três dias depois do inimigo ter abandonado Bucha), Zelensky usou toda a sua verve de indignação dramática, tomado emprestada do seu personagem ficcional da série televisiva ucraniana (a qual protagonizou) “O Servo do Povo”: protestou contra os “crimes de guerra que serão reconhecidos pelo mundo como genocídio”.

Após a retirada russa da região, vídeos começaram a correr a mídia ocidental com imagens de civis mortos ao redor de valas comuns, corpos espalhados pelas ruas de Bucha e parcialmente enterrados. Alguns com mão amarradas. Nem eram necessárias tantas imagens: a atuação de Zelensky já era o suficiente, pelos menos para os padrões do gênero “naziexploitation” hollywoodiano – falou em “civis que tinham a garganta esfaqueada nas estradas” e “mulheres estupradas na frente de seus filhos, meninas estupradas na frente de suas famílias...”.

Os vídeos foram feitos pelos próprios militares ucranianos, na medida em que entravam na região liberada. Só depois entraram os jornalistas das agências de notícias – modus operandi de uma guerra que transformou a Ucrânia num estúdio de TV a céu aberto: jornalistas são afastados das regiões de conflitos ou confinado em hotéis nos toques de recolher (como, p. ex, o cinegrafista Gabriel Chaim em Kiev). E depois convidados a fazer o tour nos cenários previamente preparados – como no caso clássico do hospital-maternidade de Mariupol, como descrito pela própria “atriz” protagonista, a blogueira de beleza e estética Mariana.

As notícias dão conta de mais de 400 cadáveres. Porém, é perceptível mesmo nos textos das reportagens da mídia ocidental sobre o “Massacre de Bucha” um “pé atrás” que confirma essas condições de trabalho que está sendo imposta à cobertura: repórteres da agência AP relatam que viram “pelo menos nove pessoas em trajes civis mortas nas ruas”. 

Um correspondente da agência Reuters relatou ter visto um corpo de um homem à beira da estrada com as mãos amarradas nas costas. E a britânica BBC relatou que, ao entrar em Bucha, ouviu “relatos” de moradores sobre “estupros” e falta de luz, água e gás “durante 38 dias”.

É visível que até mesmo o jornalismo corporativo brasileiro (convertido em correia de transmissão dos releases da OTAN e dos Videos News Releases – VNR - do governo ucraniano) está cauteloso, usando constantemente a adjetivação “suposto” e dando espaço e repercussão bem menores do que os VNR das primeiras semanas de guerra. 

Não é para menos. Talvez esse overacting do VNR ucraniano de Bucha faça vir à mente de jornalistas mais velhos, como este humilde blogueiro, a necrofilia televisiva de um não-acontecimento que marcou a “revolução romena” que derrubou o regime comunista de Nicolae Ceausescu em 1989: os “ossários de Timisoara”.

Timisoara, 1989 (esq.) e Bucha (2022): o mesmo modus operandi dos não-acontecimentos

O não-acontecimento de Timisoara

No final de 1989, na antevéspera do Natal, os telejornais mostraram chocantes imagens da descoberta de um ossário de quatro mil vítimas que, afirmavam os repórteres, eram vítimas da ditadura de Ceausescu. E outros milhares de corpos teriam sido dissolvidos em ácido. As imagens atrozes dos cadáveres alinhados sobre um lençol branco marcaram para sempre a derrubada do ditador na chamada revolução romena.

Porém, no final de janeiro de 1990, foi revelado pelo jornal Le Figaro que as imagens mostraram uma bem montada encenação (clique aqui), como analisa o jornalista Ignácio Ramonet no seu livro As Tiranias da Comunicação. “Motoristas de caminhões que transportavam metros cúbicos de corpos eram mortos com um tiro na nuca na maca pela polícia secreta para eliminar qualquer testemunha”, relatava a agência AFP.

A retórica era carregada: “metros cúbicos de corpos”, “caçambas de lixo transportando cadáveres”, “cadáveres desfigurados com ácido” etc.

Mais tarde descobriu-se que tudo tinha sido um cenário montado para cinegrafistas e fotógrafos: na verdade eram corpos de pobres desenterrados de um cemitério local e cedidos à necrofilia da TV. Na verdade, cemitério formado por valas comuns de uma região tão miserável que os moradores não tinham recursos para um enterro decente.

Para Ramonet, o falso ossário de Timisoara marcou a história do jornalismo como uma das principais enganações desde a invenção da televisão.

Como ator, Zelensky sabe que a televisão se transformou no espaço estratégico dos acontecimentos. Até o acontecimento se confundir com a própria fonte, transformando-se num não-acontecimento.

Segundo o pensador francês Jean Baudrillard, muitos testemunhos romenos falavam dessa “supressão do acontecimento”, da experiência imersiva na rede midiática no lugar da experiência viva. Na medida em que o estúdio passa a ser a central do acontecimento, a rua torna-se um prolongamento do estúdio, o lugar virtual do acontecimento – leia BAUDRILLARD, Jean, “Os Ossários de Timisoara” IN: A Ilusão do Fim ou A Greve dos Acontecimentos, Terramar, 1995.

O filme ucraniano mal produzido

Foi necessário um mês para ser aberta uma dissidência na mídia para ser revelada a natureza não-acontecimento do escândalo que abalou as mesas natalinas do ocidente. Afinal, o escândalo dos restos mortais de Timisoara era até verossímil, num país dominado pela ditadura de Ceausescu.

Porém, como este Cinegnose vem insistindo, a guerra da Ucrânia é um filme mal produzido marcado por inconsistências e canastrice – a hipernormalização forçada para a realidade parecer cada vez mais com a ficção.

As inconsistências começam com a cronológica: as tropas russas deixaram Bucha em 30 de março. 

E depois a factual: em 31 de março um sorridente e animado prefeito de Bucha, Anatoly Fedoruk, gravou um vídeo em que comemorava: “31 de março ficará na história para toda a nossa comunidade como o dia da libertação dos ocupantes russos pelas nossas forças armadas ucranianas”. Evidente contraste se dezenas de seus compatriotas estivessem espalhados pelas ruas, executados e mortos. Por que o prefeito não demonstrou em sua declaração nenhuma indignação contra os carrascos russos? 

Além disso, a primeira unidade a entrar em Bucha foram as forças especiais da Guarda Nacional. No vídeo podemos ver os militares ucranianos passando calmamente pelas ruas – nenhum sinal das “pilhas de cadáveres” nas ruas.

Em seguida, os soldados ucranianos se comunicam com os habitantes locais – e não há uma única reclamação da população sobre os “terríveis ocupantes russos”. Os moradores simplesmente contam quais objetos em Bucha foram usados ??pelas tropas russas como bases para acomodação.

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**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.