Por décadas, a indústria de fórmulas lácteas comerciais - apresentadas como leite em pó - tem usado estratégias de marketing disfarçadas, moldadas para se aproveitar dos medos e preocupações de mães em um momento vulnerável, para transformar a alimentação de crianças pequenas em um negócio multibilionário.
Isso ocorre mundo afora e também no Brasil. Aqui, a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ), logo na primeira semana em que retornou da licença-maternidade, protocolou o PL 2518/2023, que proíbe que profissionais de saúde recebam patrocínio da indústria de substitutos do leite materno, alterando a Lei 11.265/2006.
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Caso seja aprovada a proposta da parlamentar, a legislação passará a vetar qualquer forma de patrocínio da indústria de fórmulas lácteas - que inclui fabricantes, importadores e distribuidores desses produtos - a pessoas físicas ou às entidades associativas de pediatras e de nutricionistas. Apenas entidades científicas de ensino e pesquisa reconhecidas nacionalmente poderão ser patrocinadas por essas empresas.
Embora a legislação brasileira já vete qualquer propaganda ou ação promocional de bicos artificiais ou fórmula substitutiva de leite materno nos serviços de Saúde, Talíria quer deixar ainda mais explícita essa proibição com o novo projeto de lei para vetar também o patrocínio a profissionais ou entidades de pediatras ou nutricionais. A deputada explica que o PL tem o objetivo de inibir o assédio por parte da indústria de substitutos de leite materno.
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“Fato é que estratégias de marketing da indústria dirigidas a profissionais de saúde são largamente praticadas em espaços de formação, como congressos e simpósios científicos, indicando que a existência de uma regulamentação, mesmo na forma de Lei, não é suficiente para coibir práticas ilegais de promoção de substitutos do leite materno, apesar do seu impacto sobre a saúde infantil ser amplamente conhecido”, destaca Talíria na justificativa do projeto.
Aleitamento materno sob ataque
A importante revista científica Lancet divulgou em fevereiro passado a Série Aleitamento Materno 2023, divulgada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que explora as seguintes questões:
- Como os comportamentos do bebê são mal interpretados para prejudicar a amamentação, mas as intervenções multissetoriais protegem seus impactos na saúde
- Como o 'manual' de marketing de fórmula visa pais, profissionais de saúde e políticos e prejudica a saúde e os direitos de crianças e mães
- Como os desequilíbrios de poder e as estruturas políticas e econômicas determinam as práticas de alimentação, os direitos das mulheres e os resultados de saúde.
Entre as conclusões do estudo está a de que o imenso poder econômico dessa indústria é usado para assegurar que o setor seja sub-regulamentado e os serviços de apoio à amamentação sejam sub-financiados.
Uma das táticas usadas por essa indústria é a de transformar em doença comportamentos normais de bebê, como choro e agitação. A intenção, revela o estudo, é justificar a introdução de seus produtos e driblar legislações que impedem esse tipo de propaganda. Fórmulas de seguimento e transição, com a mesma identidade visual dos produtos para lactentes, é outro procedimento adotado para driblar o veto ao marketing.
Embora os fabricantes busquem associar seus produtos a noites mais tranquilas e até a um melhor desenvolvimento cerebral e da inteligência, não há evidências desses benefícios. Pelo contrário, como ressalta a Lancet.
“O aleitamento materno tem comprovados benefícios à Saúde, tanto em cenários de alta renda quanto de baixa renda: reduz doenças infecciosas da infância, mortalidade, desnutrição e risco de obesidade futura; mães que amamentam têm redução do risco de câncer de mama e ovário, diabetes tipo 2 e doença cardiovascular”, afirma o estudo.
Aleitamento salva vidas
A amamentação tem benefícios comprovados para a saúde tanto em contextos de alta como de baixa renda: reduz doenças infecciosas na infância, mortalidade e desnutrição e o risco de obesidade posterior; as mães que amamentam têm menor risco de câncer de mama e ovário, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares.
No entanto, menos de 50% dos bebês em todo o mundo são amamentados de acordo com as recomendações da OMS, o que resulta em perdas econômicas de quase US$ 350 bilhões a cada ano.
Enquanto isso, a indústria de fórmulas lácteas comerciais, conhecidas pela sigla do inglês CMF, gera receitas de cerca de US$ 55 bilhões anualmente, com cerca de US$ 3 bilhões gastos em atividades de marketing todos os anos.
Nem toda mulher amamenta
A falta de espaços seguros para amamentar ou extrair leite nos locais de trabalho, ou de instalações para armazenar leite materno, significa que a amamentação não é uma opção viável para muitas mulheres.
Algumas mulheres optam por não amamentar ou não conseguem. A pressão percebida, ou incapacidade, de amamentar – especialmente se estiver em desacordo com os desejos da mãe – pode ter um efeito prejudicial na saúde mental, e os sistemas devem ser implementados para apoiar totalmente todas as mães em suas escolhas.
Mulheres e famílias tomam decisões sobre alimentação infantil com base nas informações que recebem, e uma crítica às práticas de marketing predatório da indústria de CMF não deve ser interpretada como uma crítica às mulheres.
Todas as informações que as famílias recebem sobre alimentação infantil devem ser precisas e independentes da influência da indústria para garantir uma tomada de decisão informada. O marketing da indústria CMF é um sistema poderoso, multifacetado e interconectado que explora conscientemente as aspirações dos pais.
De acordo com a Convenção dos Direitos da Criança, os governos têm o dever de combater a desinformação – e os governos precisam adotar o Código de amamentação sem demora para garantir que os fabricantes que fazem alegações enganosas sobre seus produtos sejam responsabilizados.
Leis brasileiras protegem amamentação
No Brasil, a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL) é um conjunto de normas que regulam a promoção comercial e a rotulagem de alimentos e produtos destinados a recém-nascidos e crianças de até três anos de idade, como leites, papinhas, chupetas e mamadeiras.
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Portaria MS 2051, de 8/11/2001: Estabelece os novos critérios da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras;
- Resolução RDC 221, de 5/08/2002: Regulamento Técnico sobre Chupetas, Bicos, Mamadeiras e Protetores de Mamilo;
- Resolução RDC 222, de 5/08/2002: Regulamento Técnico para Promoção Comercial dos Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância;
- Lei 11.265, de 3/01/2006: Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de 1ª infância e também a de produtos de puericultura correlato; e
- Decreto 9.579, de 22/11/2018: Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e ao Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências.
A proibição de propaganda dessas fórmulas, combinada campanhas educativas sobre o aleitamento, obteve resultados no Brasil. A prevalência da amamentação exclusiva entre bebês menores de 6 meses aumentou mais de 1.500% entre 1986 e 2020, passando de 2,9% para 45%, segundo dados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani). No mesmo período a mortalidade infantil caiu em taxas anuais de quase 5%, associada à ampliação da rede de atenção básica, vacinação e amamentação.