CAROLINA FREITAS

Vinde a nós as mães dos pequeninos: o feminismo das mães pobres contra o monstro Damares

Damares Alves não é uma distração, não é a louca da goiabeira. Ela mobiliza convenientemente um sentimento caro às mulheres mães: o medo. Por isso a história atroz sobre sequestro e abuso de crianças

Damares Alves.Créditos: Agência Brasil
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Duas questões correlatas estão sendo discutidas nos últimos dias. A primeira é a formulação de uma Carta aos Evangélicos pela campanha de Lula, cujo conteúdo acomodaria mediações com o conservadorismo religioso. A segunda é o vídeo com a fala de Damares Alves num culto na Assembleia de Deus de Goiás; é sobre esta última que gostaria de refletir. Essa gravação é uma das coisas mais perversas que já assisti. É perverso porque cada sordidez foi detalhadamente pensada como imagem. 

Por isso, em primeiro lugar, não acho que deva ser repassado e circulado em redes sociais. Em segundo lugar, a disputa em torno do que significa “pauta de costumes”, “guerra cultural”, “cortina de fumaça” segue entre os nossos dilemas estratégicos. Sempre em tempo: Damares Alves não é uma distração, não é a louca da goiabeira. Ela mobiliza convenientemente um sentimento caro às mulheres mães: o medo. Por isso a história atroz sobre sequestro e abuso de crianças. 

Entre as graves condições da classe trabalhadora brasileira, ser mãe é a mais proletária delas. Pensar “a classe” como “as mães da classe” é uma chave fundamental que precisa destrancar algumas das nossas dificuldades na guerra contra o bolsonarismo. A sociedade antifeminista de Damares e Michelle Bolsonaro cresce em poder e destaque nos meios evangélicos pautando justamente que o feminismo é antagônico não apenas às mulheres, mas precisamente às mães. Isso nos impõe pensar com seriedade a estratégia histórica da luta política pelos direitos reprodutivos das mulheres. 

“Direito ao próprio corpo”, “meu corpo, minhas regras” são palavras de ordem que precisam ser repensadas, na minha opinião, até porque a extrema-direita se arrogou dessas formas quando bradou que não usaria máscara, que não tomaria vacina, alegando justamente a autonomia individual do corpo. É uma cilada herdada do feminismo protoliberal dos anos 90 que nós precisamos abandonar. Quem morre mais de aborto inseguro no Brasil não são as jovens universitárias, são mães negras e pobres. Não por acaso, as mulheres negras são cruciais na história das lutas pela saúde pública no Brasil, deslocando o problema do corpo individual para o corpo social. 

Precisamos centrar e substanciar a maternidade, disputar com atenção e destreza seus dilemas materiais e afetivos, compreender a fundo o entrecruzamento entre eles, descaracterizando a estética juvenil dominante incrustada no imaginário sobre o feminismo. Penso que é por aí que podemos alçar novas posições diante da perversidade imparável da hegemonia antifeminista das nossas inimigas bolsonaristas, que hoje podem nos enredar como reféns e pautar a nossa campanha. Não deixemos.

*Carolina Freitas é socióloga e doutoranda na FAU/USP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum