O Haiti atravessa uma das mais graves crises humanitárias de sua história recente, marcada por violência, insegurança alimentar e deslocamento forçado. Controladas por gangues armadas, áreas urbanas — incluindo a capital, Porto Príncipe — se tornaram territórios de caos e vulnerabilidade.
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Essa realidade não surgiu do acaso nem por obra da natureza e é resultado de séculos de exploração e desafios econômicos, políticos e sociais que remontam ao sistema colonial, passando pela Revolução Industrial e pelo neoliberalismo.
Um dos principais elementos dessa equação é o algodão, que serviu como o "motor" que impulsionou a transição da produção artesanal para a industrial e criou os alicerces para o sistema de moda como o conhecemos.
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A indústria do algodão foi a primeira a ser transformada pelo uso de máquinas para construir um modelo econômico de produção em massa que estimulou o consumo e o crescimento de outros setores, como o aço e os transportes.
Além disso, o cultivo dessa fibra conectava a economia industrial ao sistema colonial, sustentado pelo trabalho escravo em colônias, como o Haiti, e alimentava a expansão econômica e as transformações sociais do período.
Primeira república negra
O Haiti, quando ainda era colônia francesa sob o nome de São Domingos, era especialmente próspero na produção de algodão e índigo, matérias-primas essenciais para a nascente indústria da moda, além de açúcar e café, produtos altamente demandados na Europa.
O país caribenho prosperou para a França, mas a riqueza veio à custa de um sistema brutal de escravidão, que gerou revoltas, culminando na Revolução Haitiana de 1791 e, finalmente, na independência em 1804.
Após anos de luta, o Haiti tornou-se a primeira república negra do mundo e o primeiro país das Américas a abolir completamente a escravidão.
A independência, no entanto, trouxe novas dificuldades, já que o Haiti foi forçado a pagar uma enorme indenização à França para obter reconhecimento internacional, uma dívida que pesou sobre sua economia por mais de um século e gera impactos até hoje.
Essa revolução desafiou diretamente o sistema colonial e o modelo econômico de exploração e abalou as economias coloniais e a disponibilidade de mão de obra para a produção de matérias-primas.
Maquiladoras e fast fashion
Após séculos de exploração, o Haiti voltou a ser inserido no sistema global com a instalação de maquiladoras nos anos 1970, fábricas que realizam processos de montagem, transformação ou manufatura de bens para exportação, geralmente sob um regime de incentivos fiscais e benefícios alfandegários.
Essas instalações fabris são comuns em países onde a mão de obra tem custos relativamente baixos, como México, Haiti e outras nações da América Latina e Ásia. As maquiladoras recebem matérias-primas, componentes e equipamentos importados de países desenvolvidos, montam ou transformam esses materiais em produtos acabados ou semiacabados e depois os exportam, muitas vezes de volta ao país de origem dos insumos.
Já na década de 1990, com a expansão do modelo de moda rápida, o fast fashion, garoto propaganda do neoliberalismo, e a pressão das grandes marcas por produtos a custos mínimos, o país passou a desempenhar um papel de fornecedor de baixo custo para o mercado global.
No entanto, o desenvolvimento econômico proporcionado foi superficial e temporário, baseado em contratos precários que tornam o setor têxtil haitiano vulnerável às crises globais e à instabilidade local.
Tragédias recentes
Em 2010, o país sofreu um devastador terremoto de magnitude 7,0 em 12 de janeiro, com epicentro próximo à capital, Porto Príncipe.
O desastre resultou na morte de mais de 200 mil pessoas, deixou cerca de 1,5 milhão de desabrigados e causou destruição generalizada de infraestrutura, incluindo hospitais, escolas e edifícios governamentais.
A resposta humanitária internacional foi significativa, mas o país enfrentou desafios contínuos na reconstrução e recuperação nos anos subsequentes.
Houve uma enxurrada de doações de roupas de países estrangeiros que foi um golpe duro na frágil indústria têxtil haitiana. Foi criada uma concorrência desleal para as fábricas locais que enfraqueceu a demanda por produtos haitianos e acentuou a dependência externa.
Escalada da violência
Em março de 2024, o Haiti enfrentou uma escalada significativa de violência e instabilidade política. Gangues armadas invadiram a Penitenciária Nacional em Porto Príncipe, resultando na fuga de aproximadamente 4 mil presos e na morte de pelo menos 12 pessoas.
O governo declarou estado de emergência por 72 horas em resposta ao incidente. Posteriormente, em 12 de março, o primeiro-ministro Ariel Henry anunciou sua renúncia em meio à crescente pressão e à onda de violência de gangues que assolava o país.
Efeito devastador da crise climática
As mudanças climáticas são outro componente que têm agravado a crise humanitária no Haiti, aumentando a frequência e a intensidade de desastres naturais como furacões, terremotos e tempestades. Esses eventos causam inundações e deslizamentos, que destroem colheitas, deslocam comunidades e comprometem a infraestrutura do país.
A degradação ambiental, com desmatamento e erosão, eleva a vulnerabilidade a desastres, enquanto secas e alterações nos padrões de chuva afetam a agricultura e agravam a insegurança alimentar.
A saúde pública também sofre com surtos de doenças como dengue e cólera em meio à falta de saneamento e água contaminada. O deslocamento em massa de haitianos sobrecarrega os recursos das áreas de acolhimento, acentuando a necessidade de estratégias de resiliência e recuperação.
Apelo da sociedade civil
Diante dessa alarmante situação, grupos de engajamento que atuam no G20, sob a presidência do Brasil, que representam a sociedade civil, sindicatos e organizações de direitos das mulheres, se uniram em um apelo para que os líderes do grupo apoiem o Haiti, com especial atenção aos direitos humanos e à igualdade de gênero.
Em uma declaração conjunta, os grupos Civil 20, Women 20 e Labour 20 pedem que as lideranças do G20, que se reúnem este mês no Rio de Janeiro (RJ) priorizem a reestruturação do Haiti, incluindo melhorias na saúde materna e serviços de saúde sexual e reprodutiva, além de promover tolerância zero à violência de gênero no Comunicado do G20.
Os grupos lançaram uma petição para angariar apoio para que os líderes do G20 prestem suporte ao Haiti.
Assine aqui a petição | Leia aqui a declaração
Panorama da tragédia
Deslocamento interno e condições dos deslocados
- Cerca de 600 mil haitianos estão deslocados internamente devido à violência e instabilidade.
- As mulheres e meninas representam 54% dos deslocados, vivendo em condições precárias e com elevado risco de violência sexual e de gênero.
- Muitos campos de deslocados carecem de iluminação e segurança, deixando mulheres e crianças especialmente vulneráveis.
Segurança e saúde pública
- A insegurança compromete o funcionamento de serviços essenciais, com aproximadamente 40% das unidades de saúde na capital, Porto Príncipe, fora de serviço.
- Mais de 900 escolas estão fechadas, impactando a educação de milhares de crianças.
- A situação sanitária nos acampamentos de deslocados é crítica, com altos riscos de doenças transmissíveis, como a cólera.
Insegurança alimentar e fome
- Cerca de 5 milhões de haitianos enfrentam fome aguda, quase metade da população.
- A violência e a falta de segurança prejudicam a produção agrícola, fonte de sustento para muitas famílias, aumentando a insegurança alimentar.
- A ONU estima que 1,6 milhão de pessoas correm risco de morrer de fome devido ao agravamento da crise.
Impacto sobre mulheres e crianças
- Mais de 300 mil mulheres e meninas deslocadas vivem sem segurança básica e com acesso limitado à saúde e serviços de proteção.
- A ONU Mulheres alerta para o uso de violência sexual como tática de controle pelas gangues, e o Unicef estima que uma criança é deslocada a cada minuto devido à violência.
- Muitas crianças em campos de deslocados são forçadas a se unir a gangues ou recorrer a atividades de risco para sobrevivência.
O espírito do tempo da moda
Embora não explique toda a dimensão da situação trágica do Haiti, a moda, desde o cultivo do algodão por pessoas escravizadas até os empregos precários do fast fashion, faz da indústria têxtil e de confecções um exemplo das gigantescas dimensões dos desafios enfrentados pelo país caribenho no sistema econômico global, em que pressões externas e crises históricas impedem um desenvolvimento autossustentável.
Em meio a um sistema neoliberal que privilegia o lucro e o custo mínimo, o Haiti permanece preso a um ciclo de dependência e exploração, enquanto lida com problemas econômicos e sociais cada vez mais complexos.
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