O capitalismo é especialista em fazer do limão uma limonada. É um craque, por exemplo, em vender soluções para problemas que ele mesmo criou, como a crise climática.
No caso da moda, a filha predileta do capitalismo, as estratégias da indústria para ser mais "sustentável" não resolve absolutamente nada, por exemplo, no que diz respeito à superprodução de roupas.
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A nova tendência da moda para lidar com sua contribuição para os impactos ambientais que produz é usar a inteligência artificial (IA) para otimizar cadeias de suprimentos, prever demandas e reduzir devoluções.
Com IA, marcas analisam grandes volumes de dados, como redes sociais, comportamento de compras e histórico de vendas, para prever tendências futuras e a demanda por produtos. Isso permite que as marcas ajustem sua produção para evitar a superprodução e o desperdício.
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Ferramentas de IA também podem ajudar a sugerir o tamanho correto para os consumidores, com base em compras anteriores e características pessoais. Isso reduz as devoluções e, consequentemente, o impacto ambiental.
A IA permite ainda que as marcas ofereçam produtos personalizados com base no gosto individual dos consumidores. Isso inclui desde recomendações de estilo até designs exclusivos gerados automaticamente, proporcionando uma experiência de compra mais personalizada.
Algoritmos de IA são usados para otimizar estoques, prever flutuações na demanda e melhorar a logística para garantir que os produtos certos cheguem ao lugar certo no momento certo, e minimize o excesso de produção e os custos associados.
Algumas plataformas de moda online integram IA e AR (realidade aumentada) para oferecer experiências de "provador virtual" e permitir que os consumidores experimentem virtualmente roupas e acessórios antes de comprar, o que também reduz a necessidade de devoluções.
A IA auxilia ainda na promoção de práticas mais sustentáveis, como o upcycling e a reciclagem de materiais. Também é usada para monitorar cadeias de suprimentos em busca de práticas mais ecológicas, como a redução do uso de materiais virgens e a implementação de modelos de economia circular.
Reduzir a pegada sem abrir mão da produção
Muitas marcas têm adotado materiais de menor impacto ambiental, como algodão orgânico, fibras recicladas e tecidos biodegradáveis.
Outras adotam modelos de negócios baseados na economia circular, onde produtos são reciclados, revendidos ou reaproveitados. Isso inclui programas de coleta de roupas usadas, serviços de reparo e plataformas de revenda de segunda mão
Etiquetas de fast fashion, a moda rápida, têm feito compromissos de reduzir emissões de carbono em operações e cadeias de suprimentos.
Há ainda marcas estão investindo em tecnologias de reciclagem para transformar tecidos antigos em novos produtos.
Ao invés de pisar no freio da superprodução e estímulo ao consumo exagerado, a indústria da moda opta por promover novos produtos que se vendem como "sustentáveis", mas que perpetuam o ciclo tóxico de consumo e, agora, embalados pelas maravilhas dos algoritmos da IA.
Cresce mercado de segunda mão e também de roupas novas
Uma das contradições da "moda sustentável" pode ser observado no crescimento vertiginoso do mercado global de roupas de segunda mão.
Em 2023, o valor global desse mercado de roupas usadas, que fez se alastrar os brechós, foi estimado em aproximadamente 197 bilhões de dólares, com uma expectativa de crescimento para 350 bilhões até 2028 (Fashionista).
Em comparação, nos últimos 20 anos, a produção global de fibras - a principal matéria-prima da indústria da moda - quase dobrou, passando de 58 milhões de toneladas em 2000 para 116 milhões de toneladas em 2022, com previsões de crescimento contínuo para 147 milhões de toneladas até 2030, caso o ritmo atual de negócios seja mantido (Textile Exchange, 2023).
Paralelamente, o consumo de roupas também aumentou significativamente: em 2014, as pessoas compravam 60% mais roupas do que em 2000, mas as mantinham por apenas metade do tempo, refletindo uma mudança no comportamento de consumo e contribuindo para o aumento do desperdício têxtil (McKinsey & Company, 2016).
Moda global: um colosso econômico
O faturamento global da indústria da moda atingiu mais de 2,5 trilhões de dólares em 2023. Para se ter uma ideia da dimensão desse valor, o PIB do Brasil no ano passado foi de 2,17 trilhões de dólares e somos a nona maior economia do mundo.
A Itália, um dos países europeus mais industrializados e grande centro de moda, teve um PIB de 2,1 trilhões de dólares em 2023. O Reino Unido, com um PIB de aproximadamente 3,2 trilhões de dólares, tem uma economia ligeiramente maior que o faturamento da indústria da moda global.
A moda rivaliza com economias inteiras. O faturamento global da indústria da moda foi 32 vezes maior do que o PIB de Gana em 2023, que foi de 77,6 bilhões de dólares.
Lixão dos países ricos
A escolha de Gana para essa comparação não foi por acaso. Essa indústria poderosa está no centro de um dos maiores problemas enfrentados pelo país localizado na África Ocidental.: o lixo têxtil.
Com população estimada em cerca de 32 milhões de pessoas (dados de 2023), Gana país tem uma população jovem, com aproximadamente 57% dos habitantes com menos de 25 anos de idade.
Gana é um lixão têxtil dos países ricos, que despejam grandes volumes de roupas de segunda mão vindas da Europa e de outros países ocidentais.
Estima-se que mais de 70 toneladas de resíduos têxteis cheguem aos aterros sanitários do país diariamente, resultando em um grave problema ambiental.
Cerca de 40% das roupas usadas importadas para o país acabam como resíduos, muitas vezes sendo queimadas em aterros ou descartadas no oceano, o que agrava a poluição por microplásticos e outros contaminantes.
Gana tornou-se um destino significativo para o fast fashion, descartada, o que tem causado sérios impactos ambientais e econômicos e prejudicado a indústria local de vestuário e sobrecarregado os sistemas de gestão de resíduos do país.
A chegada massiva de roupas de segunda mão desestabilizou a indústria têxtil local, levou ao fechamento de fábricas e à perda de empregos.
O governo gasta centenas de milhares de dólares anualmente para gerenciar esse lixo, sobrecarregando ainda mais o sistema de gestão de resíduos do país.
Além disso, a queima desses tecidos libera substâncias químicas perigosas, como benzeno, afetando a saúde das comunidades.
O descarte inadequado também afeta as comunidades costeiras e prejudica pescadores que relatam perdas em suas capturas devido ao enredamento de redes em roupas descartadas.
Como Gana enfrenta os lixões
Gana começa a enfrentar o problema dos resíduos têxteis através de várias iniciativas e projetos focados na sustentabilidade e no reaproveitamento de materiais.
Algumas startups locais e designers ganeses têm promovido a reutilização de tecidos e a criação de peças de vestuário com materiais reciclados. Esses projetos buscam reduzir o impacto ambiental da indústria da moda, minimizando o descarte de resíduos têxteis.
Gana tem estabelecido parcerias com ONGs internacionais e fundações, como a Fundação Ellen MacArthur, para implementar conceitos de economia circular na indústria da moda. Essas iniciativas incluem a reciclagem de materiais e a reutilização de roupas descartadas para criar novas peças, ajudando a reduzir o acúmulo de lixo têxtil.
O Ghana Tech Lab tem promovido capacitações e programas educacionais para jovens empreendedores e startups, focando em práticas de produção sustentável e na adoção de novas tecnologias, como a IA, para otimizar o uso de materiais e reduzir desperdícios.
Algumas iniciativas locais incentivam a coleta de roupas usadas e seu reaproveitamento em novas peças. Isso faz parte de um esforço para evitar que roupas em bom estado acabem em aterros e para criar uma cultura de reciclagem e economia circular na indústria da moda.
Lavagem verde
Nenhuma marca global que inunda Gana com sua produção exagerada de roupas contribui para enfrentar o problema do lixão têxtil que o país enfrenta.
Fato é que a indústria da moda explora a sustentabilidade como um nicho de mercado, criando novas coleções "eco-friendly" ou "verdes", mas sem mudar seus modelos de negócios, que continuam baseados em altos volumes de produção e consumo rápido.
Ou seja, a boa vontade não passa de "greenwashing", a lavagem verde, em que a sustentabilidade é mais uma estratégia de marketing do que um compromisso genuíno com a redução de danos ambientais.
E agora a lavagem verde ganha uma nova tendência, o uso de IA. Mas, ao invés de tentar mitigar o estrago que causa, por exemplo, em Gana, o objetivo do uso da tecnologia é acelerar vendas, otimizar a produção, engajar consumidores e seguir desfilando as mazelas da filha predileta do capitalismo.
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