O retorno da Victoria's Secrets à passarela trouxe à tona lembranças de uma ferida vergonhosa - e ainda não totalmente cicatrizada - que graças ao movimento #MeToo costurou a icônica marca de lingeries a um dos escândalos mais asquerosos dos últimos tempos: o caso Jeffrey Epstein.
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O elo entre a rede de tráfico sexual de Epstein e a marca de lingerie está em Les Wexner, fundador da L Brands, empresa que controlava a Victoria's Secrets.
Epstein foi nomeado como conselheiro financeiro de Wexner e teve acesso a milhões de dólares da sua fortuna e chegou a controlar parte significativa de seus investimentos e imóveis.
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Essa relação próxima de Epstein e Wexner permitiu ao financista e predador sexual usar uma posição privilegiada para sustentar seu estilo de vida luxuoso, o que facilitou seu esquema criminoso.
Embora não haja provas diretas de que a L Brands ou a Victoria's Secret tenham financiado diretamente os crimes de Epstein, a proximidade entre os dois homens e o poder financeiro delegado ao criminoso permitiram que ele acumulasse riqueza e influência.
Não é exagero constatar que parte dos milhões de dólares vindo da venda de peças de roupas íntimas vendidas pela marca em todo o mundo tenha ido parar no bolso do financista.
Victoria's Secret controlada por Wexner
A L Brands, liderada por Wexner, controlou a Victoria's Secret de 1982 até 2020. Ele transformou a pequena rede de lojas de lingerie em um império global da moda.
Em 2020, após uma série de escândalos e a crescente perda de relevância da Victoria's Secret no mercado, a L Brands anunciou que se separaria da marca. Em agosto de 2021, a marca de lingerie se tornou uma empresa independente.
A influência de Epstein como consultor financeiro de Wexner perdurou durante grande parte dos anos 1990 e início dos 2000. O financista começou a trabalhar para o dono da L Brands em 1991 e rapidamente ganhou acesso ao controle de grande parte das finanças e ativos pessoais do ricaço.
No auge da marca Victoria's Secret, durante a década de 2000 e até o início dos anos 2010, a empresa atingiu um volume de vendas de aproximadamente 7,7 bilhões de dólares em 2015. A grife estava presente em mais de 1.600 lojas espalhadas pelos Estados Unidos e tinha uma forte presença no mercado global, com suas peças sendo vendidas em mais de 70 países.
O modelo de negócio incluía não apenas lingerie, mas também fragrâncias, produtos de beleza e acessórios, que ajudavam a diversificar as fontes de receita da empresa.
No entanto, a partir de 2016, a marca começou a perder relevância e enfrentou um declínio nas vendas, em grande parte devido às mudanças nas expectativas culturais e no mercado, que exigiam mais diversidade e inclusão nas campanhas e na oferta de produtos
Além disso, Epstein teria se aproveitado de sua conexão com Wexner e com a Victoria's Secret para se aproximar de mulheres e prometer oportunidades de trabalho como modelos. Relatos indicam que ele se apresentou falsamente como um recrutador para a marca, o que facilitou seu abuso de poder sobre jovens modelos.
Após as denúncias contra Epstein, Wexner afirmou que cortou laços com ele em 2007, ao descobrir vários casos de fraudes e desvio de dinheiro de suas contas pessoais. A estreita relação entre os dois, que durou anos, permitiu que Epstein adquirisse poder e riqueza, o que indiretamente pode ter contribuído para a sustentação de suas atividades criminosas.
#MeToo revela a cultura sexista da VS
A ligação estreita entre Espstein e Wexner veio à público a partir de 2017, com o movimento #MeToo, surgido como uma reação global contra o assédio e abuso sexual em várias indústrias, expôs várias práticas abusivas em empresas e organizações.
No contexto da Victoria's Secret, o #MeToo destacou problemas relacionados à cultura tóxica dentro da empresa. Denúncias emergiram, não apenas contra Epstein, mas também contra figuras importantes dentro da L Brands, incluindo relatos de comportamento inadequado de executivos da empresa em relação a modelos, criando um ambiente de trabalho problemático e permissivo ao abuso.
Relatos começaram a emergir sobre o comportamento inadequado de executivos seniores, como Ed Razek, que foi chefe de marketing da Victoria's Secret e uma figura central no desenvolvimento dos famosos desfiles da marca.
Razek foi acusado de criar um ambiente tóxico, incluindo comentários inapropriados sobre as modelos e comportamento de assédio. Em um caso, foi alegado que o executivo tentou beijar modelos e fazer perguntas ofensivas sobre sua aparência física.
Esse comportamento reflete uma cultura corporativa que objetificava mulheres e ignorava a necessidade de um ambiente de trabalho seguro e respeitoso.
O desfile anual da Victoria's Secret, que era uma das maiores vitrines da marca, foi cancelado em 2019, em parte por causa da queda de audiência e das críticas de que a marca não refletia a realidade das mulheres modernas. Depois de um hiato de seis anos, o evento retornou no último dia 15 em Nova York.
Construção de uma nova imagem
A Victoria's Secret que foi, por muitos anos, um símbolo de sensualidade e beleza, enfrentou uma avalanche de escândalos que expuseram uma cultura sexista dentro da empresa, o que levou a uma reestruturação profunda em sua imagem e gestão.
Em resposta aos escândalos e à pressão pública, a Victoria's Secret anunciou uma reestruturação significativa. Entre as mudanças, a marca descontinuou seu famoso desfile de moda e mudou o foco para campanhas mais inclusivas. Foram feitas mudanças no conselho de administração, incluindo a entrada de mais mulheres e figuras comprometidas com a diversidade.
A empresa lançou a iniciativa "The VS Collective", que inclui mulheres como a atleta Megan Rapinoe e a atriz Priyanka Chopra, com o objetivo de promover uma imagem mais diversa e inclusiva.
A reestruturação tem como objetivo mudar a imagem da Victoria's Secret, de uma marca sexualizada para uma mais empoderadora e inclusiva, em sintonia com os valores contemporâneos de igualdade de gênero e representatividade.
Não é só na VS, é na moda toda
A cultura sexista na indústria da moda tem sido objeto de intensas críticas, especialmente após o surgimento de movimentos como o #MeToo, que revelaram casos generalizados de assédio e exploração.
O sexismo nessa indústria está ligado à objetificação das mulheres, abuso de poder por parte de executivos e fotógrafos, e à pressão por padrões de beleza irreais e nocivos.
A indústria da moda há muito tempo objetifica mulheres para vender produtos e promove uma imagem de beleza feminina idealizada e sexualizada. Modelos, especialmente mulheres jovens, muitas vezes são tratadas como objetos, sem voz ou autonomia em suas carreiras.
Existem relatos frequentes de assédio sexual e abuso de poder por parte de fotógrafos, agentes e executivos. Um dos casos mais conhecidos foi o de Terry Richardson, um renomado fotógrafo que foi acusado de assédio sexual por várias modelos, mas que continuou a ser contratado por grandes marcas até que o #MeToo colocou mais foco sobre seu comportamento.
A indústria promove padrões de beleza rígidos e inalcançáveis, particularmente para mulheres. Modelos são frequentemente pressionadas a atingir um peso extremamente baixo e a manter uma aparência jovem e perfeita.
Essa prática tem impacto na saúde física e mental das profissionais e contribui para altos índices de distúrbios alimentares, ansiedade e depressão. A fixação da indústria por esses padrões afeta não apenas as modelos, mas também as consumidoras, que se veem incapazes de corresponder às expectativas estabelecidas.
O assédio sexual e o abuso de poder são problemas profundos na moda. Em vários casos, modelos relataram que foram abusadas ou coagidas em situações profissionais. Muitas jovens, especialmente aquelas que estão no início de suas carreiras, enfrentam condições precárias e sentem que têm pouca ou nenhuma proteção contra tais abusos.
O caso de Epstein, que usou sua conexão com a Victoria's Secret para atrair jovens mulheres, é um exemplo disso. O mesmo se aplica à relação entre fotógrafos e modelos, onde a linha de consentimento frequentemente é ignorada, resultando em múltiplas acusações de comportamento predatório.
Executivos da indústria da moda muitas vezes perpetuaram uma cultura tóxica e sexista ao criarem ambientes de trabalho onde a exploração e o assédio eram tolerados ou encobertos. Além do sexismo há também cumplicidade de alto a baixo dessa indústria que perpetua esses casos escabrosos.
Falta de representatividade e inclusão
A moda historicamente marginalizou mulheres que não se encaixam no padrão de beleza eurocêntrico e magro promovido pela indústria. As mulheres negras, trans e de corpos fora dos padrões estabelecidos enfrentam não apenas discriminação, mas também são invisibilizadas em desfiles e campanhas de moda.
A mudança nesse cenário é recente, com marcas tentando incorporar diversidade e inclusão em suas campanhas, mas a cultura enraizada de sexismo e discriminação permanece um desafio.
Relembre o caso Epstein
O financista estadunidense Jeffrey Epstein foi acusado de comandar uma vasta rede de tráfico sexual de menores e abuso sexual por décadas, envolvendo várias figuras poderosas.
Em julho de 2019, Epstein foi preso sob acusações federais de tráfico sexual de menores em Nova York e na Flórida. Ele já havia sido condenado em 2008 por crimes relacionados ao abuso sexual, mas conseguiu um acordo controverso que resultou em uma sentença leve.
Epstein foi encontrado morto em sua cela no Centro Correcional Metropolitano de Manhattan, em 10 de agosto de 2019, enquanto aguardava julgamento. Sua morte foi oficialmente declarada como suicídio por enforcamento, mas as circunstâncias geraram inúmeras teorias da conspiração. Muitos especularam sobre a possibilidade de homicídio, dado o potencial de Epstein de implicar figuras poderosas envolvidas em seus esquemas.
Sua morte interrompeu o processo judicial diretamente contra ele, mas o caso foi reaberto em torno de suas associadas e vítimas, levando à prisão de Ghislaine Maxwell, colaboradora próxima de Epstein. Maxwell foi julgada e condenada por tráfico sexual e outros crimes relacionados ao esquema de Epstein.
Mistérios permanecem
No caso Epstein, embora várias informações já tenham sido reveladas, algumas questões importantes ainda permanecem em aberto.
Um dos maiores mistérios nesse escândalo envolve a lista de figuras poderosas que podem ter se envolvido em suas atividades criminosas além de Wexner.
Vários homens ricos e poderosos foram associados ao caso Epstein, seja por suas conexões sociais com ele ou por seu envolvimento em eventos organizados por Epstein. Nem todos os associados ao predador sexual foram acusados de envolvimento em seus crimes.
O ex-presidente dos EUA, Bill Clinton, viajou em várias ocasiões no jato privado de Epstein, conhecido como o "Lolita Express", para eventos de caridade e conferências ao redor do mundo. Clinton admitiu ter viajado com Epstein, mas nega qualquer envolvimento em atividades ilegais.
O atual candidato republicano à Casa Branca e ex-presidente dos EUA Donald Trump foi associado a Epstein por causa de suas interações sociais durante os anos 1990 e 2000, particularmente em eventos na Flórida e Nova York. Embora Trump tenha admitido conhecer Epstein e já o tenha elogiado em entrevistas antigas, ele nega qualquer envolvimento com os crimes de Epstein e cortou relações com ele anos antes das acusações emergirem.
O príncipe Andrew, filho da rainha Elizabeth II e irmão do Rei Charles, enfrentou sérias acusações relacionadas a seu relacionamento com Epstein. Virginia Giuffre, uma das principais vítimas do predador sexaul, alegou ter sido forçada a ter relações sexuais com o príncipe quando era menor de idade. Embora Andrew tenha negado as acusações, ele foi alvo de uma ação judicial e acabou resolvendo o caso fora dos tribunais em 2022.
Bill Gates, cofundador da Microsoft também foi associado a Epstein, com registros de reuniões entre os dois após a primeira condenação de Epstein por crimes sexuais. Gates afirmou que as interações foram relacionadas à filantropia, mas a associação levantou questões sobre o motivo pelo qual ele continuou a se encontrar com Epstein mesmo após este ser condenado.
Embora alguns nomes tenham sido mencionados em investigações e testemunhos, muitos detalhes sobre figuras públicas que participaram ou se beneficiaram de seus crimes de tráfico sexual ainda não foram divulgados completamente. A participação dessas figuras em eventos ou na rede de tráfico de Epstein é um ponto que continua gerando especulação.
Outro mistério gira em torno de Ghislaine Maxwell, que foi condenada e considerada uma facilitadora importante na rede de tráfico sexual de Epstein, ainda não está completamente claro o alcance completo de seu envolvimento, especialmente em termos de sua participação em identificar e aliciar jovens para Epstein. Além disso, as possíveis negociações ou informações que ela possa ter fornecido para reduzir sua sentença ainda não vieram totalmente à tona.
Ainda não está completamente claro como Epstein acumulou tanta riqueza, mesmo com os indícios de que as empresas de moda de Wexner possam ter dado bilionárias contribuições. Ele atuava como consultor financeiro, mas nunca foi formalmente associado a grandes instituições financeiras. Seus negócios permanecem envoltos em mistério. Muitos acreditam que ele poderia ter usado informações comprometedoras de seus clientes ricos e poderosos para obter dinheiro ou influência.
Uma grande quantidade de documentos legais relacionados ao caso de Epstein ainda está selada. Esses documentos, que incluem depoimentos e evidências, podem conter informações cruciais sobre outros envolvidos e detalhes adicionais sobre a operação de tráfico. A divulgação desses documentos poderia esclarecer muitos pontos que ainda estão obscuros.
Embora várias vítimas de Epstein tenham se manifestado e recebido indenizações, muitas outras ainda não foram identificadas ou não tiveram suas histórias reveladas. A extensão completa do impacto de seus crimes sobre as vítimas permanece subestimada.
Essas questões pendentes continuam a gerar interesse público e jurídico, e novas revelações podem surgir à medida que investigações sobre seus bens, cúmplices e atividades financeiras continuam.
Não é por acaso que o retorno da Victoria's Secrets tenha cutucado feridas nunca cicatrizadas que revelam as profundas relações entre a cultura sexista e predatória e a indústria da moda.
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