VESTES DO SUL GLOBAL

Como a Rússia superou sanções na indústria da moda

Governo russo lançou medidas para fortalecer a autossuficiência, incentivar a produção local e promover a expansão em novos mercados

Créditos: BRICS+ Fashion Summit - A moda russa se reinventou após sanções impostas desde 2022
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A Cúpula dos BRICS 2024, marcada para ocorrer de 22 a 24 de outubro em Kazan, Rússia, coloca em evidência temas estratégicos, como a cooperação econômica e a busca por alternativas ao sistema financeiro ocidental, com foco no uso de moedas locais para facilitar transações comerciais entre os países membros.

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Este encontro de líderes das maiores economias emergentes — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, juntamente com os novos integrantes — Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos — reflete o desejo do bloco de consolidar uma ordem mundial multipolar e de aumentar sua influência no cenário global.

Esse mesmo espírito de colaboração e diversificação esteve presente no BRICS+ Fashion Summit, realizado em Moscou de 3 a 5 de outubro. O evento, que reuniu 20 mil participantes e alcançou 4 milhões de visualizações online, explorou o impacto da moda como uma força cultural e econômica.

O tema "descentralização e democratização" permeou os debates e destacou a capacidade da moda de conectar culturas e economias emergentes, ao mesmo tempo que promove inovação e sustentabilidade.

O evento ofereceu uma plataforma única para que designers e marcas dos países do Sul Global tivessem visibilidade internacional para fortalecer as ligações intersetoriais entre moda, economia e política.

Representante brasileiro

O desfile de encerramento do BRICS+ Fashion Summit foi apresentado pelo estilista brasileiro Lucas Leão. Ele é conhecido pelo uso habilidoso de formas arquitetônicas, que também demonstrou na passarela de Moscou. Seus modelos desfilaram em roupas atualizadas e minimalistas, com predominância de tons brancos e pastéis.

Leão vestiu homens e mulheres com looks monocromáticos, onde as silhuetas simples e lacônicas ecoavam todos os tipos de formas esculturais. Este designer brasileiro é um mestre nas drapeagens – à primeira vista simples, suas roupas ganham vida assim que os modelos começam a se mover.

Divulgação BRICS+ Fashion Summit - Moda brasileira de Lucas Leão na passarela em Moscou

Moda, política e economia

Essa conexão entre as cúpulas de moda e economia no BRICS sublinha como o setor de moda, ao lado da economia, reflete as respostas das nações aos desafios globais.

A resiliência da moda russa frente às sanções impostas desde 2022 é um exemplo disso. O governo russo tem adotado políticas públicas voltadas à substituição de importações e ao fortalecimento da produção local, como uma maneira de mitigar os impactos econômicos causados pelas sanções e incentivar o desenvolvimento de novos mercados.

Tanto a cúpula econômica dos BRICS quanto o BRICS+ Fashion Summit ilustram o potencial das economias emergentes de usar setores como a moda não apenas como ferramenta cultural, mas também como uma ponte para a inovação e cooperação global.

A resiliência da moda russa

Desde a imposição de sanções econômicas à Rússia em 2022, decorrentes do conflito na Ucrânia, o governo russo implementou diversas políticas públicas para mitigar os impactos negativos nas principais indústrias do país, incluindo a moda.

O setor de moda é notoriamente impactado por flutuações econômicas, políticas globais e mudanças nos hábitos de consumo, o que a torna uma referência valiosa para entender as dinâmicas do capitalismo.

Para compreender as respostas do Kremlin às sanções impostas, vale se debruçar sobre as medidas tomadas para fortalecer a autossuficiência, incentivar a produção local e promover a expansão em novos mercados da indústria de moda russa.

Saem marcas estrangeiras e crescem as locais

A saída de mais de 70 marcas estrangeiras, incluindo gigantes do fast fashion como Zara e H&M, e de marcas de luxo como Louis Vuitton, Christian Dior, Givenchy, Gucci, Balenciaga, Chanel, Hermès, Prada e a Cartier, deixou um vazio no mercado russo. 

Essa debandada criou desafios para a moda russa, mas também abriu oportunidades para marcas nacionais fast fashion e de luxo ganharem relevância. Com a digitalização e a expansão do comércio eletrônico, as marcas locais têm se posicionado como alternativas viáveis às gigantes globais. 

Com essas transformações, a Rússia tem, gradualmente, redefinido seu mercado de moda ao combinar herança cultural com inovação e atender tanto aos consumidores de alta renda quanto ao público em busca de opções acessíveis e rápidas.

No segmento de fast fashion, as marcas locais têm aproveitado a saída de competidores internacionais para se consolidarem como líderes no mercado interno.

Com uma ênfase crescente no comércio eletrônico, essas marcas têm conquistado uma fatia significativa do mercado, especialmente entre os consumidores que buscam moda acessível e rápida.

A Lamoda é a maior plataforma de e-commerce de moda da Rússia e oferece variadas opções, desde roupas de fast fashion até produtos de marcas premium. A empresa conseguiu preencher parte do vácuo deixado por marcas internacionais ao investir fortemente na entrega rápida e na ampla gama de produtos. 

Instagram: @lamodaru

O Wildberries é um dos maiores marketplaces da Rússia e oferece uma variedade de produtos de moda, eletrônicos e acessórios. A marca tem se expandido internacionalmente e hoje é uma referência para moda acessível, especialmente após a saída das marcas ocidentais.  

Instagram: @wildberries_russia

Uma das principais marcas de fast fashion da Rússia, a Gloria Jeans oferece roupas acessíveis e modernas para jovens. A marca foi capaz de capturar uma parte significativa do mercado ao oferecer tendências globais a preços acessíveis.  

Instagram: @gloriajeans.ru

O mercado de luxo russo, embora impactado pelas sanções, também tem se beneficiado de um crescimento das marcas locais que oferecem exclusividade e artesanato de alta qualidade. 

Entre as principais marcas de luxo da Rússia, destaca-se Ulyana Sergeenko, estilista reconhecida internacionalmente por suas coleções de alta costura. 

Ela mistura influências históricas russas com designs contemporâneos. Suas peças, frequentemente vistas em celebridades internacionais, têm ajudado a manter o luxo russo relevante no cenário global, mesmo com as restrições comerciais. 

Instagram: @ulyanasergeenko

Há ainda Vika Gazinskaya, estilista famosa por suas criações únicas e inovadoras. Ela traz uma fusão de modernidade e tradição e colocou o luxo russo no radar global. Suas peças são populares entre fashionistas e colecionadores de moda de alta qualidade.  

Instagram: @vikagazinskaya

Já Gosha Rubchinskiy é conhecido pelo streetwear de luxo que reflete a juventude pós-soviética que cultivou um público fiel. Sua marca, fortemente influenciada pela subcultura urbana russa, tornou-se um ícone no mercado de moda de luxo alternativa.  

Instagram: @gosharubchinskiy

Impactos das sanções na moda em números

O mercado de moda russo está em pleno processo de transformação com oportunidades e desafios para empresas locais, como mostra o relatório "The Future of the Fashion Market in Russia: Belt-Tightening or Fashion without Borders?" ("O Futuro do Mercado de Moda na Rússia: Aperto de Cintos ou Moda sem Fronteiras?", em português).

Divulgado em dezembro de 2023 pela Yakov & Partners, empresa internacional de consultoria que era conhecida como McKinsey & Company na Rússia, o documento revela que o mercado de moda russo, que inclui vestuário e calçados, encolheu para aproximadamente 2 trilhões de rublos em 2022, o que equivale a cerca de 20 bilhões de dólares. 

Antes disso, o mercado havia alcançado um valor de cerca de 2,36 trilhões de rublos (aproximadamente 23,6 bilhões de dólares) em 2018. Esse encolhimento gradual, com uma queda anual média de 3,5% entre 2018 e 2022, foi acelerado pelas sanções internacionais e pela saída de grandes marcas estrangeiras, como Zara e H&M, após a invasão da Ucrânia.

A queda mais acentuada ocorreu em 2022, com uma retração de 8%, causada principalmente pela interrupção nas cadeias de suprimentos, pela saída das marcas ocidentais, além da depreciação do rublo e da redução do poder de compra da população.

Por outro lado, o segmento de moda de baixo custo cresceu significativamente, representando 72% do mercado em 2022. Isso ocorreu porque as marcas locais, que oferecem preços mais acessíveis, conseguiram preencher parte do vácuo deixado pelas marcas estrangeiras.

As vendas online de moda na Rússia mais que dobraram entre 2018 e 2022, com uma taxa de crescimento anual de 35%. Marketplaces russos, como Wildberries e Ozon, foram os principais impulsionadores desse aumento, ajudando as marcas locais a se destacarem em um ambiente de rápida digitalização.

Com a saída das grandes marcas estrangeiras, as empresas russas aumentaram sua participação de mercado de 20% para 35% em 2022. Esse crescimento foi facilitado pela diversificação dos modelos de negócios, como a integração de múltiplos canais de vendas e a adaptação às preferências de consumo locais.

O relatório prevê que o mercado de moda na Rússia pode crescer entre 5% e 7% nos próximos cinco anos, dependendo de fatores como a recuperação da demanda do consumidor e a chegada de novos atores estrangeiros, especialmente de países não alinhados às sanções. Além disso, o turismo de países "amigos" da Rússia pode se tornar uma fonte de expansão.

Moda russa para exportação

A Rússia exporta moda, principalmente roupas e têxteis, para vários países, com destaque para a China, Bielorrússia, e Cazaquistão, que são seus maiores compradores.

Em 2020, a China sozinha importou cerca de 4,7 bilhões de dólares em têxteis e roupas da Rússia, representando uma fatia significativa das exportações russas de moda. Outros países, como Bangladesh e Turquia, também figuram como importantes mercados para os produtos russos de moda.

Acesse aqui os dados completos sobre o comércio exterior russo.

Políticas públicas para a indústria da moda

As políticas públicas implementadas pela Rússia desde a imposição das sanções têm desempenhado um papel crucial na resiliência e transformação da indústria da moda. 

Com foco na substituição de importações, incentivos fiscais, apoio à exportação, promoção de plataformas digitais, capacitação profissional e incentivo à sustentabilidade, o governo russo tem mitigado os impactos das sanções, mas também impulsionado o crescimento e a inovação no setor. 

Esses esforços têm permitido que marcas locais ganhem destaque, atendam a uma demanda crescente por moda acessível e se preparem para um futuro promissor no mercado global.

Seis políticas públicas da Rússia para a moda

1. Substituição de importações

Reduzir a dependência de insumos e produtos estrangeiros na indústria da moda.

  • Programa de Desenvolvimento do Setor Têxtil e de Confecção: Iniciado em março de 2022, este programa visa apoiar pequenas e médias empresas nacionais por meio de financiamentos subsidiados e incentivos para a produção local de tecidos e materiais.
     
  • Iniciativa "Made in Russia" para Moda: Lançada em janeiro de 2023, esta iniciativa promove o uso de materiais produzidos internamente e incentiva a inovação em design e fabricação.

O governo russo investiu aproximadamente 6,5 milhões de dólares em 2023 para fomentar a produção local de tecidos e acessórios. Entre 2022 e 2023, a produção nacional de tecidos aumentou 15% e reduziu a necessidade de importações em 20%.

2. Incentivos Fiscais e Subsídios

Tornar as empresas locais mais competitivas no mercado interno e internacional.

  • Redução de Impostos para o Setor Têxtil: Implementada em julho de 2022, esta política reduz o imposto sobre valor agregado (IVA) de 20% para 10% para empresas do setor têxtil e de confecção.
     
  • Subsídios para Inovação em Moda: Aprovado em setembro de 2023, este programa oferece subsídios de até 650 dólares para designers e marcas emergentes que desenvolvem coleções sustentáveis e inovadoras.

As empresas que aderiram à redução de IVA economizaram, em média, cerca de 2.600 dólares anualmente.Mais de 300 empresas do setor têxtil e de confecção receberam subsídios em 2023, promovendo a inovação e a sustentabilidade.

3. Apoio à Exportação

Abrir novos mercados para produtos de moda russos, especialmente em países que não aderiram às sanções ocidentais.

  • Fundo de Promoção de Exportações de Moda: Estabelecido em agosto de 2022, este fundo fornece apoio financeiro e logístico para marcas de moda que desejam expandir para mercados na Ásia, Oriente Médio e África.
     
  • Participação em Feiras Internacionais: O governo financia a participação de designers russos em feiras de moda como a Copenhagen Fashion Summit e a China Fashion Week, promovendo a presença internacional da moda russa.

Em 2023, as exportações de moda russas cresceram 25%, atingindo aproximadamente 4 bilhões de dólares. Mais de 50 novas parcerias comerciais foram estabelecidas com países da Ásia e África desde o início das sanções.

4. Promoção de Plataformas Digitais

Fortalecer o comércio eletrônico e facilitar o acesso dos consumidores russos a produtos de moda.

  • Incentivo ao E-commerce Nacional: Implementado em dezembro de 2022, este programa oferece subsídios para plataformas de e-commerce que promovem marcas russas.
     
  • Desenvolvimento de Marketplaces Locais: Desde 2023 o governo apoia a expansão de marketplaces como Wildberries e Lamoda, melhorando a infraestrutura digital e logísticas para suportar o crescimento das vendas online.

As vendas online de moda aumentaram de 10% em 2018 para 32% em 2023. Aproximadamente 2,6 milhões de dólares foram investidos em infraestrutura digital para marketplaces em 2023.

5. Capacitação e Formação Profissional

Desenvolver habilidades e competências na indústria da moda para fomentar a inovação e a qualidade.

  • Cursos de Design de Moda Patrocinados pelo Governo: Desde 2022, a iniciativa que financia cursos gratuitos e subsidiados em universidades e escolas de moda para formar novos talentos.
     
  • Workshops e Seminários sobre Sustentabilidade: Desde 2023, eventos têm sido organizados pelo Ministério da Indústria e Comércio para educar designers sobre práticas sustentáveis e responsabilidade ambiental.

Mais de mil estudantes participaram dos cursos de design de moda patrocinados pelo governo em 2022. Foram realizados 50 workshops e seminários sobre sustentabilidade em 2023, com a participação de mais de cinco mil profissionais da moda.

6. Incentivo à Inovação e Sustentabilidade

Promover práticas sustentáveis e inovadoras na produção de moda.

  • Certificação de Moda Sustentável: Criado em 2023, o programa certifica marcas que adotam práticas sustentáveis e oferece benefícios fiscais e maior visibilidade no mercado.
     
  • Fomento à Pesquisa em Tecnologias Têxteis: Criado em 2020, o financiamento de projetos de pesquisa para desenvolver novos materiais e técnicas de produção sustentáveis.

Até o final de 2023, mais de 100 marcas russas receberam a certificação de moda sustentável. Nesse período, foram financiados 20 projetos de pesquisa em tecnologias têxteis sustentáveis, com um investimento total de cerca de 1,3 milhões de dólares. 

Moda, a filha predileta do capitalismo

A moda, filha predileta do capitalismo, pode ser um importante termômetro das atividades de mercado por diversas razões ao refletir as tendências de consumo, mudanças culturais e flutuações econômicas.

A indústria da moda responde rapidamente a mudanças nas condições econômicas. Durante crises financeiras, a demanda por itens de luxo ou de alta moda tende a diminuir, enquanto o mercado de fast fashion ou produtos acessíveis cresce.

Durante a crise de 2008, marcas de luxo experimentaram queda nas vendas, enquanto empresas de fast fashion como H&M e Zara viram um aumento de participação de mercado. Isso demonstra como o comportamento dos consumidores se ajusta às condições econômicas e como a moda pode indicar ciclos econômicos mais amplos.

A moda também é uma manifestação direta de mudanças sociais e culturais. Movimentos como o consumo consciente e a sustentabilidade têm moldado as preferências dos consumidores, levado a um aumento na demanda por produtos de moda ética e sustentável.

Essa mudança reflete um desvio das práticas de produção em massa e sugere que os mercados têm se adaptado a consumidores mais preocupados com o impacto ambiental e social dos produtos que compram.

A moda também é um exemplo claro dos efeitos da globalização nas economias capitalistas. As cadeias de produção de grandes marcas são globais, e eventos econômicos ou políticos em uma região podem afetar diretamente a moda em outra.

Por exemplo, sanções econômicas ou problemas logísticos globais, como vistos durante a pandemia de Covid-19, afetam a capacidade de produção e distribuição de grandes marcas globais.

A indústria da moda frequentemente adota novas tecnologias, e isso pode indicar as tendências futuras do capitalismo, especialmente em relação à digitalização e ao comércio eletrônico.

O crescimento do e-commerce e o uso de big data para entender o comportamento do consumidor demonstram como o setor está na vanguarda da inovação tecnológica. Grandes marketplaces como Amazon e Alibaba cresceram enormemente por causa da moda e de produtos associados.

No caso russo, as movimentações do mercado da moda servem de bússola para compreender a resiliência da economia do país diante das sanções impostas desde 2022.

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